sábado, 25 de outubro de 2025

Ekzyliön - Caso 1 - Entre cânticos e armas!



" - Reza a lenda... Quando o céu rasgar-se em fogo e a Terra chorar cinzas, surgirá o Ekzyliön, aquele que carrega o peso dos mundos e a chama da renovação. Dele nascerá o julgamento e a esperança, pois quando tudo perecer na sombra... será nas mãos dele que o destino da luz decidirá permanecer... Ou se extinguir... Mas será apenas uma lenda? ”


Iêmen, verão de 2018.

Entre as colinas áridas e o mar de Áden, erguia-se a pequena cidade costeira de Al-Muqallah, onde o calor parecia fundir o céu à terra, e sol daquele verão de 2018 banhava as colinas de Taiz, espalhando uma luz dourada sobre a cidade.... As casas, de tons amarelados e muros firmes, refletiam o sol inclemente do deserto, enquanto o cheiro de sal e poeira se misturava ao vento que vinha do oceano.

Era um tempo de calmaria aparente, meses antes de que a catástrofe global, que em poucos meses consumiria o hemisfério norte, desse seus primeiros sinais. Naquela tarde, ninguém imaginava que a rotina simples de um garoto de nove anos, retornando da escola, marcaria o início de algo muito maior do que a tragédia que logo se abateria sobre o mundo.

O pequeno menino caminhava em passos firmes pela alameda de pedras até a entrada da mansão. Vestia o uniforme impecável da escola: camisa social clara, calças azul-escuro e sapatos polidos que brilhavam sob a luz. A mochila de couro moderno repousava em seus ombros miúdos, mais símbolo de status do que de necessidade.

O guarda, de postura ereta, observava-o com respeito e abriu o portão ornamental de ferro sem hesitar. O menino passou pelo jardim bem cuidado, onde jasmins e roseiras desafiavam o clima árido, o mármore claro da fachada refletia o sol, e a cúpula branca da casa reluzia como um farol entre as montanhas.

A porta principal se abriu, pesada e majestosa, deixando o garoto adentrar o interior. Lá dentro, o frescor do ar contrastava com o calor da rua, cortinas grossas atenuavam a claridade, e o ambiente cheirava a incenso de oud, misturado ao aroma distante de especiarias na cozinha. O chão de pedra polida refletia a luz suave dos vitrais, havia tapeçarias ricas nas paredes, estantes com livros encadernados em couro e vasos ornamentais importados, tudo gritava herança e poder.... Então, o silêncio se fez presente...

O guarda do portão em sua rotina, alheio a tudo que viria, ajeitou o fuzil no ombro, atento apenas aos sons rotineiros da rua, foi nesse instante que o ar foi cortado por um grito. Um grito feminino, de dor e terror, agudo, sufocante, atravessando o coração de quem ouvia.

Logo depois, um segundo grito, não era de homem, nem de mulher, mas um som primal, carregado de ira pura, que arrepiou até a espinha do soldado. O guarda sentiu o instinto mandá-lo correr, mas seus pés ficaram cravados no chão, e então veio a luz.

A mansão inteira explodiu em uma onda flamejante, as paredes ergueram-se e se desfizeram em pó no mesmo instante, janelas foram arremessadas como estilhaços, o teto se ergueu antes de desmoronar em chamas. O choque lançou uma onda de calor que atingiu o guarda mesmo distante metros do lado de fora, empurrando-o contra o portão de forma violenta, e então novamente o silêncio, restando apenas o crepitar das chamas a irromper pelo ambiente...

Em segundos, tudo o que fora a casa, seus corredores, seus salões, sua história, tornou-se apenas cinzas e labaredas. O fogo devorava o que restava, e uma coluna de fumaça negra subia ao céu azul, como uma cicatriz escura no coração da cidade. O guarda, ofegante, ainda com o eco do grito em seus ouvidos, mal acreditava no que via: onde antes existia poder e vida, restava apenas o vazio flamejante da destruição, e ele sequer entendeu o que pelos deuses, ali aconteceu....




“Houve um homem — não há tanto tempo assim... De fala mansa e olhar distante — que um dia disse que o Céu aguardava por nós. Que o planeta inteiro havia recebido um prazo… uma última chance. Se a humanidade aprendesse a conviver sem destruir a si mesma, a Terra seria coroada por uma nova era de luz. Mas, se as nações voltassem a se engalfinhar em guerra e ódio… então o próprio mundo se encarregaria de reescrever o destino dos homens. ”

“Chamaram-no de sonhador, de profeta, de louco. Mas o tempo passou — e o prazo se cumpriu… e a humanidade falhou. A aurora da promessa veio coberta de cinzas, trazida por uma guerra nascida da ambição de uma das mais sombrias potências do norte. O gelo partiu-se, o céu ardeu, e as cidades de ferro e vidro tornaram-se pó e sombra. O que fora poder virou deserto; o que fora civilização tornou-se lembrança. ”

“Contudo, a Mãe Terra não permitiu a aniquilação total. No sul — onde ainda havia verde, calor e fé — a África ergueu-se como ventre ancestral, abrigando os que escaparam dos ventos radioativos e das ruínas metálicas. O Oriente Médio, devastado, enviou seus filhos além-mar; caravanas de desalento e esperança. Povos da Ásia, da Europa e das terras geladas cruzaram oceanos, fugindo do frio e da fome. E o Brasil... o Brasil tornou-se o coração do novo mundo. ”

“Nestas planícies tropicais e nas montanhas cobertas de névoa, línguas se misturaram, culturas se entrelaçaram, e os descendentes de todas as nações começaram a reconstruir o que restou. Favelas tornaram-se fortalezas, morros ergueram-se como santuários, e os sobreviventes levantaram templos improvisados à sombra dos velhos prédios do passado.

Mas, assim como os homens, as antigas dores também sobreviveram: a ambição, o fanatismo, o medo do diferente. E o purgatório se instalou entre os que desejavam recomeçar... e os que ansiavam dominar novamente. ”

“Hoje, o mundo ecoa sobre um norte silenciado pelas cinzas e um sul fervendo de vida.
Lendas caminham entre os vivos — criaturas e espíritos antes adormecidos despertam de seu sono milenar, pois o equilíbrio da Terra foi rompido. ”

“Dizem que as esperanças que restam são as derradeiras — frágeis chamas vacilando na escuridão. E que apenas os de coração puro, mesmo que despedaçados pela dor, foram escolhidos para restaurar a harmonia perdida. Pois a data foi o limite… E o destino de toda a humanidade, e da própria Terra, repousa agora nas mãos do Ekzyliön. ”







Morro do Sumaré, Rio de Janeiro, 2033

O Rio de Janeiro de 2033 não era mais a mesma cidade que o mundo conhecera antes da Terceira Guerra Mundial. O hemisfério norte havia sido devastado, e o sul, embora poupado da destruição direta, tornara-se um refúgio superpovoado, um caldeirão de sobreviventes vindos de todos os cantos do planeta. O português se misturava a idiomas do Oriente Médio, diale­tos africanos, sotaques do leste europeu e entonações latinas que ecoavam pelas vielas como um coral de civilizações em reconstrução.

O Morro do Sumaré, antes um reduto verde e silencioso, transformara-se em um novo lar para milhares de refugiados. Ali, entre antenas antigas e trilhas cobertas por musgo, ergueram-se casas de ferro, vidro e sucata, uma favela vertical que parecia escalar o próprio céu. O ar era denso por vezes, carregado de fumaça que raríssimas ocasiões vencia o meridiano e vinha do norte, mas na maioria do dia e noite, era pura esperança e frescor; crianças corriam entre os barracos coloridos, enquanto geradores a diesel zumbiam como corações mecânicos de um organismo que insistia em viver, tentando suprir a eletricidade escassa.

No alto da encosta, onde o vento uivava mais forte, havia uma pequena praça de concreto rachado e parapeitos enferrujados, a Praça São Bento, diziam que ali, antigamente, havia um mirante, um ponto de contemplação da cidade. Agora era o centro da vida local: um mercado improvisado, um palco de fé e desespero, onde orações, gritos e músicas se confundiam sob o mesmo céu.

O sol caía pesado sobre a feira, transformando bancas e lonas em lâminas de calor, havia cheiro de peixe defumado, de manga madura e de óleo quente de barracas que fritavam salgados, mas sem aviso, o burburinho habitual, vozes, negociações, o tilintar de moedas, foi rasgado por um som seco: passos pesados que não pertenciam ao mercado.

Ele apareceu como um furacão humano, corpo enorme, músculos salientes como cordas sob a pele, camiseta rasgada, colete com bolsos repletos de latas e tiras de metal onde pendiam granadas; no ombro, um AK-47 reluzia com reflexos de sol e sangue antigo. A pele trabalhada em tatuagens contava histórias de violência e credo: frases riscadas, nomes, símbolos. Os olhos, porém, eram o que aterrorizava, vermelhos, quase incandescentes, como se carregassem algo além de raiva: febre de ódio cristalizada.

E naquele surgimento inesperado, primeiro veio a palavra, depois as ações... “ - São eles! Os pretos! Os pobres! Os arremedos! As aberrações! Vocês mataram nossa esperança! ” - bradou, a voz chapada por uma raiva ritual, como quem declama uma sentença. 

O sotaque tinha o gosto das cidades que sobraram; a sentença, o veneno de uma fé quebrada, atirou para o alto, depois para as mesas. Uma barraca de frutas explode em chuva de polpa e casca, vovós que vendiam pão se jogaram no chão, pegando netos no colo; um vendedor de ervas cobriu a cabeça com um pano e começou a balbuciar preces antigas.

O som dos tiros era seco e irregular; o eco subia pelas fachadas, rebatia em azulejos quebrados e vinha de volta como um aviso. Pessoas gritavam, corriam, caíam; o mercado virou mapa de pânico: calçado perdido, mercadoria espalhada, uma criança chorando num canto enquanto o suor escorria pelo rosto de vários. O ar, antes aromático de comida e especiarias, agora tinha gosto metálico, sangue e pólvora, mas, no entanto, até o momento, nenhuma morte, ninguém havia perdido a vida, em algo que parecia surreal e inacreditável.

A polícia, se soube do ocorrido, evitou o envolvimento, afinal periferia naquela nova era, valia menos do que na era antiga, enquanto ao lado de um pilar coberto de pichações, num beco lateral, um par de olhos observava… Parecia humano, parecia preocupado, mas era um olhar atento, reluzente, observava tudo como se parecesse conectado com a cena e os acontecimentos, enquanto logo próximo, uma mãe protegia a filha.

O marombeiro da loucura continuou, apontava o fuzil para corpos, para mercadorias, para quaisquer semblantes que alimentassem sua teoria selvagem de culpa, o calor na praça parecia aumentar como se o sol brilhasse cada vez mais forte, mas ninguém parecia perceber isso no meio do terror. Cada disparo desenhava um risco no espaço, e cada risco transformava a feira em cena de tragédia. O grito “ - Em nome de nosso senhor Deus! ” saiu empastado, como se a frase fosse um mantra que o obrigava a seguir, havia, no tom, algo de profético e de doentio.

Perto dali, uma senhora negra, de saia rodada e mãos calejadas, agarrou-se ao balcão e olhou de volta. Não havia medo do homem, só… Havia conhecimento antigo, a certeza de que a cólera alheia é também efeito de algo maior: miséria, loucura, desespero que se veste de justificativa sagrada. Gritou, não por si, mas para que outros se erguessem: “ - Saiam! Saiam daqui! ” E foi a própria voz que virou salva-vidas improvisada.

O guarda do mercado tentou avançar, o joelho trêmulo, a ordem de defesa gravada na garganta. Uma granada voou do peito do atacante numa pequena parábola sinistra e explodiu entre barracas de tecido, espalhando fumaça e chamas instantâneas. Pessoas foram arrancadas do chão pelo impacto, assim como atormentadas pelo calor; uma nuvem de pó e cacos subiu, cegando por segundos o cenário inteiro. O cheiro de plástico queimado se acopla ao chumbo quente, e foi naquele instante, naquele momento, que o observador deixou de ser apenas expectador!

O ar ainda tremia com o impacto da explosão, o estampido ecoou pelas vielas, reverberando contra as paredes descascadas e os telhados de zinco. Poeira e estilhaços dançavam no ar como pequenas brasas suspensas, iluminadas pelo fogo que começava a lamber os barracos próximos, o cheiro acre de pólvora misturava-se ao de ferro, suor e desespero. Gritos e choro se erguiam como um coro disforme, uma frase escapa de um dos homens que tenta se proteger: “ - Alguém mata esse filho da puta logo! ” - O som da tentativa de sobrevivência. 

“ - As pessoas clamam por salvação… mas quantas delas logo depois, se afogam nas próprias crenças, cegas demais para perceber que o mal que temem, já sai de suas próprias bocas. ” Após pronunciar essas palavras, mais para si que para qualquer outro que pudesse ouvir, foi nesse instante, no silêncio entre dois segundos de caos, que da sombra encostada no concreto rachado, o observador se moveu, não fora um salto, fora como uma ruptura na lógica do movimento. Como se o ar se partisse dele para abrir caminho, em menos de um piscar, ele cruzou a distância que separava o beco da praça, rasgando o espaço como um relâmpago sem luz.

Então, dois pés em ataque encontraram um peito, o do agressor da praça. O impacto foi tão certeiro que o corpo do marombeiro se dobrou sobre si mesmo, o ar escapando num som seco e surdo. Num reflexo instintivo, o observador - agora puro instinto e fúria contida - agarrou o pescoço do homem, usando o peso da queda a seu favor. Os dois despencaram para fora da rua, morro abaixo, em plena queda livre em direção a base da elevação que servia de moradia para uma população inteira, a mais de setenta metros de altura!

O som da feira desapareceu, os gritos, os tiros, tudo foi engolido pelo vento cortante que rugia contra o concreto, e, em franco despencar, por um breve instante, o tempo se dilatou, os olhos vermelhos do marombeiro e os olhos de luz do desconhecido se encontraram, um espelho distorcido de raiva e propósito. E então, sumiram.

A multidão, atônita, olhou para o vazio à frente e abaixo dos barracos, assim como da rua recém transformada num palco de guerra, no entanto, apenas fumaça e poeira dançando no ar. O barulho da cidade parecia prender a respiração, nenhum corpo, nenhum som, nenhum sinal sequer do agressor e de suas palavras ácidas.... Somente o vento, sussurrando entre os becos, como se levasse embora o segredo de quem - ou o que - havia agido naquele instante.

Para os dois protagonistas do ato, o silêncio após a queda durou o tempo de um suspiro, e então o mundo se rasgou. Um clarão pálido surgiu no meio do ar, curvando o espaço como se a própria realidade se dobrasse sobre si por um instante, o Rio de Janeiro desapareceu, substituído por um túnel de luzes distorcidas e sombras líquidas, onde o som era uma mistura de rugido e sussurro, e o tempo parecia se contorcer em espirais.

Duas silhuetas atravessaram o portal, o primeiro - o marombeiro - despencando sem graça nem controle, caindo como um peso morto, o impacto contra o solo ecoou como trovão, mas ainda assim parecia amortecido e não fatal, apesar de doloroso sem dúvida… O segundo - o homem dos olhos luminosos - esse não caiu, ele pousou, os pés tocaram a pedra quente com a leveza de quem já estivera ali incontáveis vezes.

O ar ali era denso, pesado, ardente, um calor abrasador subia do chão, e o cheiro era o de ferro derretido, enxofre e rocha viva. À frente, rios de lava cortavam o subterrâneo como veias pulsantes, iluminando as cavernas em tons alaranjados e vermelhos. As paredes respiravam, rangendo, como se o lugar fosse vivo - e irritado.

O marombeiro tentou erguer-se, ofegante, o suor escorrendo como óleo sobre a pele tatuada, seu peito arfava, o calor queimava seus pulmões, os olhos corriam de um lado para o outro, procurando qualquer sinal de lógica naquele pesadelo. “- Que.... o que é isso...? ” A voz dele vacilou, rouca. ”- Onde... onde diabos a gente tá?! ”

O outro homem - imóvel, firme como uma estátua - não respondeu. A luz em seus olhos oscilava como fogo sob vidro, ele deu um passo à frente, o chão sob seus pés pareceu vibrar, como se reconhecesse sua presença…

“ - Ei! Eu tô falando contigo ô esquisitão! ” O marombeiro berrou, a voz misturando raiva e medo. “ - Quem é você, seu desgraçado? O que tá acontecendo aqui? Isso é algum tipo de alucinação, é isso?! ” O ar vibrou, uma brisa quente - impossível, num lugar tão sufocante - moveu os cabelos do marombeiro, e a voz que lhe respondia os questionamentos, não vir da garganta do homem, mas do espaço ao redor, ecoando entre as pedras e o fogo: “ - Nem todo ser, para sofrer ou causar sofrimento, precisa de inferno ou de demônios... às vezes, basta um espelho. ”

O marombeiro empalideceu, o homem à sua frente o observava em silêncio, e por um instante, os reflexos da lava pareciam se curvar diante do anfitrião, como se o fogo o reconhecesse, e o aceitasse, e, acima deles, o portal se fechou num estalo seco, deixando apenas o som distante do magma borbulhando... e a respiração ofegante de um homem que começava a perceber que não era mais ele quem estava no controle.

Ainda assim, ele tenta, o marombeiro força um riso rasgado, doentio, enquanto engatilhava outra granada. O metal reluzia sob a luz da lava ardente enquanto ele berrava: “ - Vocês são o câncer! ”, bradou ele. “ - E eu sou a cura de Deus! ”

Mas Deus não respondeu, a granada explode na mão do homem, diante de seu peito, um urro de agonia ecoa por toda a caverna, e de forma totalmente inexplicada,, não teve sua mão destroçada como qualquer ser-humano teria tido! Além disso, parecia, na visão do homem ferido e aterrorizado diante do que acontecia agora, que quem respondeu fora justamente, o opositor de Deus segundo as escrituras sagradas que supostamente guiavam suas próprias noções de justiça…

O marombeiro com o corpo ainda trêmulo da queda, encarava o anfitrião e começava a detalher seu semblante pela primeira vez... Jovem, comum, demasiado comum, pensou, com os olhos semicerrados. Cabelos castanhos médios, desalinhados pelo vento que parecia brotar do nada, uma camiseta cinza clara colava-se ao peito pelo calor, o jeans gasto, o tênis comum, como qualquer um que se veria nas ruas antes do mundo ruir. Mas havia algo errado, algo incompreensível ainda, os olhos dele, esses não eram nada comuns...

Eles não refletiam a luz da lava, eles pareciam criar a luz que irradiava abundante, eram de prata viva, líquidos, vibrando em pulsos que oscilavam entre calma e fúria, o rosto mantinha uma serenidade quase humana, mas por trás daquela expressão havia algo impossível de ser descrito...

O agressivo homem tentou falar de novo, mas fora impossível, pois o ar aumentava sua vibração, o chão, antes sólido, pulsava como se o próprio solo respirasse, enquanto o rapaz mantinha-se imóvel, os olhos prateados faiscando sob o reflexo do fogo que começava a se erguer ao redor, e o mais assustador… As chamas não vinham de fora, elas nasciam do jovem anfitrião.

Primeiro, finos filetes dançaram entre os dedos; depois, colunas de fogo subiram por seus braços, serpentinas vivas que envolviam seu corpo sem o tocar, sem queimar, como se reconhecessem aquele que as despertavam. O rugido veio então, profundo, ancestral, quase divino, o som ecoou naquele ambiente onde estavam, o fogo se expandiu em torno do rapaz, e do interior das chamas uma face colossal emergiu, feita de fogo puro e pulsante, moldada por correntes de energia viva. Os olhos eram fendas de luz branca, e cada respiração fazia aquele mundo subterrâneo estremecer.

Por um instante, a face rugiu novamente, e nesse segundo rugido sua forma mudou, o rosto humanoide de fogo tornou-se o de uma fera, com presas incandescentes e uma juba de labaredas que se erguiam ao céu. Um vento abrasador varreu o local, as pedras e o ar vibrando numa explosão de calor.

O marombeiro, fora empurrado violentamente para trás, como um boneco. Seu corpo voou metros adiante antes de tocar o chão novamente, o impacto levantando uma nuvem de poeira e brasas, e o rugido, como se tivesse cumprido sua meta inicial, então cessou, a fera tornou-se homem outra vez, um semblante de fogo, sereno, majestoso, mas inegavelmente perigoso.

O jovem simplesmente emitiu uma expressão de desolação, a criatura não se manifestaria tão fácil, e quando novamente o incandescente anfitrião falou, sua voz vinha em duas camadas, uma humana, outra... antiga, profunda, ecoando como um trovão distante. “- Por muito tempo eles protegem nosso mundo de sua maldade… Acredita que terão piedade com vocês se persistirem? Já esqueceu do desespero nas chamas Velkur? Revele-se agora, ou serão destruídos sem piedade…”

O ar começou a pesar, o som do magma gotejando se tornou distante, abafado, como se o mundo prendesse a respiração. O rapaz permanecia firme, o olhar prateado fixo no homem estendido, até que este começou a se contorcer. Primeiro, espasmos, depois, grunhidos, e então o impossível, para a maioria dos seres humanos.

A pele do marombeiro rasgou-se em linhas escuras, como se o corpo fosse apenas uma casca, veios negros serpentearam sob sua carne, expandindo-se, empurrando ossos e músculos para fora, moldando algo maior, mais grotesco. O cheiro de enxofre e ferro queimado tomou o ar, em segundos, a criatura estava de pé, quase dois metros de altura, um amálgama de trevas e metal. Granadas e rifles fundiam-se à sua pele, como se o inferno tivesse decidido usar o arsenal humano como armadura, ao passo que dentes serrilhados rasgavam-lhe o rosto, os olhos vermelhos ardiam como rubis incandescentes.

A voz que emergiu dele era uma mescla de mil vozes, distorcidas e furiosas: “ - Você... não devia ter me encontrado maldito caminhante! Nenhum maldito enviado vai me mandar de volta pra Erebus! "

A cada palavra, o chão tremia, as sombras vibravam nas paredes, como se o próprio ar rejeitasse a presença da criatura. O rapaz ergueu lentamente o braço, cobrindo parte do rosto com o antebraço como se previsse o desfecho de tudo, então seus olhos prateados cintilaram uma última vez, antes do rugido final.

Não era o rapaz, mas sim algo dentro dele, ou ao redor dele, ou ainda, acompanhando ele, do fogo às suas costas, uma forma colossal emergiu, a mesma face flamejante de antes, agora gigantesca, furiosa, tomando o espaço ao redor. A criatura das trevas hesitou, cogitou uma fuga, um estratagema, uma oferta, mas era tarde demais.

“ - Nenhum de vocês cria o mal - eu entendo… Apenas dão forma ao que os humanos já guardam por dentro. Mas vocês se alimentam do medo e chamam isso de poder, então agora, uma vez mais, sentirão outra vez um verdadeiro poder, o poder do fogo que não se ajoelha diante das trevas! ”

Então um golpe de pura energia - som, luz e calor - atravessou a caverna, não partiu do jovem, mas de ao redor dele, como se algo o envolvesse e partisse para o ataque, e o impacto foi absoluto, a entidade negra fora dilacerada em um segundo, sequer teve tempo de reagir, seu corpo explodindo em fragmentos de sombra e metal que se dissolveram como cinzas sugadas para dentro da lava.

Os gritos então ecoaram, gritos humanos, demoníacos, primais, até se transformarem num sussurro rouco, que desapareceu dentro do magma. O calor subiu, as sombras cessaram, e onde antes havia o monstro, agora jazia o corpo do marombeiro, frágil, magro, sem cor, um espectro do homem que fora. Seu peito ainda se movia, débil, ferido, como se lutasse para continuar existindo.

O calor ainda pairava no ar, espesso, sufocante, a fumaça das chamas serpenteava pelo chão rachado como um espírito que não sabia para onde ir... Entre os fragmentos do que restara da batalha, o agressor se movia, ou tentava, seu corpo, antes vigoroso e tenso como o de um atleta, agora era apenas um esqueleto coberto de pele. A força se fora junto com a entidade que o habitava.

Ele tossiu, o som rouco ecoando como um soluço de ferro velho, tentou se erguer, falhou, caiu de lado, o olhar, antes em fogo de arrogância, agora vacilava entre a dor e a confusão. As mãos tremiam. “ - N-não pode ser.... não pode...” balbuciou, entre dentes trincados. “ - Eu... eu era o escolhido... Deus... disse que me usaria... que eu limparia esse mundo da sujeira...”

As lágrimas escorriam pelo rosto sujo de fuligem, o suor, o sangue e o choro se misturavam até tornarem-se indistintos. Ele virou o rosto para cima, mas o divino não respondeu, apenas as brasas dançavam ao redor, como zombando de sua fé quebrada.

“ - Os... Os infiéis, são pragas, são... arremedos de gente...” a voz falhava, mas o ódio ainda lutava para sobreviver dentro dele. “ - Eles é que trouxeram tudo isso... os degenerados, os desviados, os pagãos... eles destruíram o mundo... e eu...” O vento soprou, levando o calor embora, como se a própria Terra quisesse se livrar dele. “ - Eu... só fiz o que era certo...” murmurou uma vez mais, olhando as próprias mãos trêmulas, agora magras, frágeis... “ - Era a vontade Dele... não era? Não era...? ”

A voz se partiu, aos poucos, a lucidez se misturava com a histeria; o fanatismo com o medo. Ele ria e chorava ao mesmo tempo, tentando se agarrar a qualquer pedaço de sentido que restasse, mas nada havia, o eco do demônio, o poder, a certeza, tudo se fora. Agora restava apenas um homem nu de alma e de fé, um homem que, no fundo, percebia o horror do que se tornara. 

" - Eles... mentiram pra você...” o jovem rapaz, compadecido da loucura que presenciava, sussurrou, a respiração do agressor falhando... " - Todas essas vozes ... mentiram...” O olhar do agressor se perdeu no vazio, e um último soluço escapou de sua garganta seca, e então o silêncio o envolveu, pesado, definitivo, como uma lápide sem nome.

O fogo se mantinha brando e sereno, na forma de um rosto flamejante pairando por detrás do jovem, não eram necessárias palavras, ficava claro que havia um entendimento entre os dois… Um último rugido, mais grave, profundo, quase um cântico, reverberou pela caverna, o chão se dobrou, a realidade se torceu… E em um piscar de olhos, não havia mais ninguém ali.

No instante seguinte, uma lufada quente soprou por outra viela estreita do morro. As pessoas que se escondiam entre barracos e destroços sentiram o ar vibrar, mas não viram o jovem surgir, muito próximo de onde desaparecera. O corpo do homem causador do ataque ao local estava ao chão, desacordado, respirando com dificuldade, o rapaz o toca, e seus olhos brilham novamente…

“ - Fabiano... T. Willians... Filho de um soldado estadunidense e de uma mulher de fé inabalável. Criado entre hinos e discursos de salvação, mas nunca compreendeu que a fé é entrega , não domínio. Desde jovem, confundiu o poder das palavras divinas com o peso das armas, e quando cresceu, sua devoção se misturou ao ferro, ao suor e ao sangue. ”

O jovem observava o homem armado caído aos seus pés, vê seu corpo apresentar os sintomas da possessão, e pensava em quantos como ele haviam surgido desde o fim da guerra, que ele sequer havia tido notícia. O mundo estava exausto, e quando o medo se torna rotina, a loucura encontra terreno fértil.

“ - Infelizmente não é o primeiro... e não será o último. ” A voz interior ecoava serena, mas carregada de tristeza. “ - Ele peregrinou por templos e congregações, de norte a sul deste país, buscando um Deus que refletisse sua própria raiva. Rejeitava a compaixão, chamando-a de fraqueza, e cada porta que se fechava, o aproximava mais do abismo, até que ele deixou de ouvir vozes humanas, e passou a escutar o chamado que sussurra nas sombras. Foi quando o Erebus o acolheu. ”

Era a constatação amarga, espíritos deformados pelo ódio encontravam nele uma morada perfeita: um corpo forte, uma mente instável e uma crença cega. Uma combinação letal.

O jovem fixou o olhar sobre Fabiano uma vez mais, sabia que o homem à sua frente agora estava só. O brilho rubro nos olhos, a fúria insana, tudo havia desaparecido, mas em tempos como esses, muitos demônios ainda encontrariam seus altares em pessoas assim...

Ele respirou fundo, o vento soprando sobre o morro, abaixo, o som das feiras e o cheiro de fritura misturavam-se ao cheiro de pólvora recém liberada. O rapaz apenas o observou por mais alguns segundos, viu a polícia em ronda logo abaixo, após tudo ter acontecido e então correu até eles, apontando que havia encontrado o homem… Os policiais olham em sua direção, correm passando por ele e quando se viram para obterem mais informações, o jovem não estava mais lá, parecia haver sumido entre as sombras.

O céu do Rio já se tingia de laranja e violeta quando as primeiras luzes se acenderam pelas ruas. O ar trazia o sal do mar e o murmúrio distante das ondas misturava-se ao zumbido das luzes precárias dos postes. No alto de uma rocha que parecia impossível de escalar, ele estava lá, camisa cinza simples, calça escura, mochila ao lado, um notebook apoiado sobre as pernas.

O brilho frio da tela refletia nos seus olhos agora nada prateados, fazendo-os parecer estrelas perdidas entre sombras. Um som discreto rompeu o silêncio, o toque de envio de mensagem, e sua voz, calma, quase cotidiana, fluiu para o microfone do celular:

“ - Boa noite, senhor Luiz. Tudo certo? Então, eu já atualizei as plataformas e as redes, conforme combinamos, a próxima atualização é pra semana que vem, tá bom? Fique tranquilo que como prometido na nossa reunião hoje, o senhor terá a papelaria mais bem divulgada das redes sociais, tá bom? Ah, e o PIX é o mesmo de sempre, assim que puder enviar o pagamento do mês, eu agradeço. ”

A voz era gentil, profissional, sem pressa, quando terminou, ele sorriu levemente, um sorriso humano, genuíno, fechou o notebook com cuidado, o guardando na mochila, e levantou-se. O vento soprou, levantando-lhe os cabelos, trazendo consigo o som grave e constante das ondas quebrando nas pedras lá embaixo. Por um instante, ele apenas observou o horizonte, as estrelas começando a pontuar o céu escurecido, e então, em voz baixa, quase um sussurro carregado de peso e solidão, ele murmurou:

“ - Por quanto tempo ainda conseguirei impedir que morram...? Até agora, contive as manifestações, a que tive acesso, nenhuma vida se perdeu graças ao calor que desarmava todas as munições e os ataques... Mas não posso ser ingênuo ao ponto de acreditar que isso vai durar pra sempre. ”

Seus olhos se voltaram para o vazio diante dele, onde o mar se fundia com o céu, um leve brilho, quase imperceptível, percorreu sua íris , como brasas sob cinzas. “ - Preciso me tornar mais atento, mais próximo…” disse, como se falasse com alguém invisível, que apenas ele podia ouvir. “ - Que eu tenha sagacidade suficiente para me antecipar sempre... e força para ser o que o destino espera de mim…”

O vento aumentou, soprando com intensidade, fazendo a areia girar em espirais douradas ao redor da rocha. Por um instante, o reflexo das ondas assumiu a forma de uma silhueta flamejante, olhando-o de volta, e então desapareceu com o som distante de um trovão abafado.

O rapaz permaneceu imóvel por alguns segundos, depois, colocou a mochila nas costas e desceu da pedra com passos firmes, desaparecendo na penumbra das ruas enquanto o mar rugia atrás dele.

Continua...

Galeria de Imagens

O novo visual do mapa-múndi, após a catástrofe nuclear de 2019:

O jovem anfitrião e protagonista da saga:

O agressivo homem possuído:

A criatura que surgiu do corpo de Fabiano:

A cena vista e enfrentada pelo Velkur, na caverna...


Tema de abertura Ekzyliön - Por IA feat Lanthys

Quando o céu gritar em chamas
E o mundo se partir em dois
Um passo
Um grito
O fim da paz
O que resta? Quem somos nós?

Nas sombras ele virá
Caminhando entre o nada e o amanhã

Ekzyliön
O peso que carrega
Ekzyliön
A chama que renega
No caos
Na dor
O destino a sangrar
Será luz ou sombra a ficar?

Cenário de cinzas no vento
Os sussurros do que já morreu
Um eco distante
Um juramento
De esperança que nunca cedeu

Das trevas ele surgirá
Com o destino na palma a decidir

Ekzyliön
O peso que carrega
Ekzyliön
A chama que renega
No caos
Na dor
O destino a sangrar
Será luz ou sombra a ficar?

2 comentários:

  1. Uma ótima estréia!
    Todo o cenário desse mundo futuro alternativo e apocalíptico ficou muito bem narrado e "desenhado" e só os acontecimentos que levaram a essa atual realidade poderiam render excelentes one shots especiais, complemetando ainda mais esse cenário.
    Gostei da música de abertura e ainda mais da letra no final, para poder acompanhá-la enquanto eu colocava mais de uma vez para ouvir. Bem legal mesmo.
    A cena da invasão do possuído e o posterior confronto ocorrido e uma outra dimensão ficou muito bem feito e detalhado, ao passo que, como você comentou na apresentação, não ficou tão grandioso, mas, ainda assim repleto de detalhes impressionantes, mostrando que o Anfitrião pode vir a mostrar muitas cenas grandiosas no futuro.
    O final ficou bem amarradinho e mesmo não deixando nenhum gancho imenso, ainda assim a história como um todo, já anima e deixa ansioso pelo próximo capítulo.
    Parabéns amigão!

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  2. Grande Lanthys!que parece estae
    Mais uma estrela daquelas!

    Texto primoroso, trazendo um heroi diferente...
    Que atua no anonimato, de modo furtivo, mas implacável.

    O seu texto tem cenários enunciados pela suas crenças e isso eu falarei em off...

    Brasil, "o coração do mundo ", pós guerra.

    Mas, você trouxe, ao invés do convívio harmônico, o preconceito enraizado travestido de fé religiosa cega e insana.

    O "Deus" do marombeiro não é o mesmo que eu e você acreditamos.

    Deus é paz!
    Deus é amor!
    Deus é misericórdia!

    Uma leitura atual de nossa sociedade corrompida.

    O marombeiro representa o aue vemos hoje...

    Pessoas falando e fazendo atrocidades em nome de Deus.

    Nesse cenário apocalíptico, Ekzyliön é a chama da esperança oculta dentro de nós.

    É a resistência que parece estar escondida dentro de nós, mas está lá...

    Existe e resistência!

    Parabéns!
    Vida longa ao Ekzyliön!!!!

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