A luz do sol era pálida, quase indiferente, enquanto os dois viajantes cruzavam a trilha rochosa que avançava sem pressa pelo deserto de pedras mortas. O chão rangia a cada passo, não pela fragilidade, mas por uma densidade seca e rígida que denunciava séculos de compressão e abandono. A vegetação era inexistente, nem musgos, nem sombras, apenas pedras retorcidas, encurvadas como se gritassem, e fendas negras por onde o calor subia em ondas discretas.
Mas não demorou para que o cenário começasse a se deformar de maneiras ainda mais bizarras.
Ao longe, algumas silhuetas surgiam, árvores que pareciam ter sobrevivido a um castigo milenar. Troncos longos e negros, como se queimados por dentro, retorciam-se em formas agônicas, as raízes, visíveis sobre o solo, escavavam desesperadamente o chão, mas a água que buscavam parecia estar enclausurada sob camadas de rocha que jamais seriam rompidas. E mesmo assim… elas resistiam! Suas folhas, ralas e esbranquiçadas, tremulavam ao sabor de ventos antinaturais.
Em certos pontos, a rocha se abria em depressões colossais, verdadeiras crateras que pareciam ter sido cavadas por algo que o próprio planeta tentou esconder. Eram tão grandes que seu fundo se perdia nas trevas, e algumas delas eram cobertas parcialmente por lajes de pedra que haviam deslizado sobre o abismo, formando túneis naturais de dezenas de quilômetros, imensos buracos que exalavam vapor e sons abafados, como se o mundo estivesse a sussurrar debaixo da crosta.
A atmosfera era um paradoxo cruel: o chão fervia sob os pés, mas a próxima lufada de vento poderia trazer um frio cortante, vindo das zonas congeladas adiante. A troca brusca entre calor sufocante e frio paralisante era constante, e injusta, o corpo não se adaptava, os sensores de Lanthys oscilavam para manter o equilíbrio térmico, e até Korr’vhar, tão acostumado aos extremos, detinha sua marcha mais do que o habitual.
O cheiro no ar era ácido e metálico, como se o solo estivesse constantemente derretendo e se oxidando ao mesmo tempo. Às vezes vinham rajadas com odor de enxofre, em outras, um aroma seco e puro demais, semelhante ao ozônio rasgado por uma descarga elétrica.
Olhos normais e biológicos arderiam, não apenas pelo calor, mas pela secura extrema, além de que o ar com certeza arrancaria toda e qualquer umidade da pele como Lanthys a conhecia nos humanos, era como caminhar por cima de brasas que exalavam gelo e fogo ao mesmo tempo, num ciclo infernal e hipnótico. Cada passo era um fardo, e mesmo os silêncios pareciam carregar peso, o peso da própria terra mutilada.
Acima, o céu já não era o mesmo, nuvens giravam em padrões estranhos, como espirais malformadas, e por vezes, clarões distantes riscavam o horizonte sem trovões. O magnetismo estava distorcido, Lanthys confirmou em seus sensores: os polos daquela região estavam desalinhados com o planeta, havia ali uma anomalia geofísica gigantesca, como se o próprio núcleo do mundo tentasse escapar do que habitava na superfície.
O sol estava agora, no ponto mais cruel do céu, o calor ressoava das rochas como se o chão inteiro ardesse em febre, ao passo que o vento gelado, em rajadas secas e imprevisíveis, chicoteava os rostos como lâminas frias. A cada passo, um rangido sob os pés; o metal de Lanthys crepitava em resposta ao contraste brutal de temperaturas.
Korr’vhar, em silêncio até então, parou por um instante e olhou ao redor, para a imensidão que os cercava, onde a morte parecia se erguer em formas contraditórias e belas. “- Você já se perguntou por que este lugar existe assim… quebrado? Um lado querendo devorar com o fogo… o outro, congelar qualquer sopro de vida?”
Lanthys seguiu mais alguns passos antes de parar... os olhos se estreitaram com o reflexo do calor no horizonte… “- Já sim… Mas não encontrei uma resposta lógica. É como se o planeta tivesse sido ferido… e esse fosse o local onde a cicatriz ainda sangra.”
Korr’vhar assentiu levemente, e continuou: “- Dummok explicou o básico a você, mas a verdade é que chamamos essas terras de ‘Âmago da Entropia’, onde os polos deste mundo enlouqueceram completamente… Aqui, magnetismo e pressão colapsaram sob algo que jamais deveria ter existido, talvez uma falha no coração do planeta... ou talvez um erro provocado por mãos ambiciosas demais.”
Os dois ficaram a observar ao longe, estavam sob a proteção de uma pequena sombra de uma rocha que se erguia pelo menos cinco metros acima do solo, e foi o próprio Korr’vhar quem prosseguiu, firme, mas deixando claro, um certo pesar: “- Aurithar era instável muito antes de nós pisarmos aqui. O núcleo do planeta pulsa com ritmos contraditórios, campos eletromagnéticos desalinhados, como se algo tivesse entortado o eixo natural do mundo. Dizem que uma guerra antiga entre entidades muito maiores que nós, deixou feridas profundas na crosta…"
Lanthys analisou os dados captados: “– Há radiação abaixo da média, mas há... ela não deveria estar aqui, nem as micro correntes subterrâneas desse tipo. Está tudo... desequilibrado.”
“- Isso é o coração torto do mundo. Quando Thuram’kar foi criado, ele foi ajustado para buscar fontes energéticas que corrigissem esse desequilíbrio. Mas a entidade… ela não corrigiu nada. Apenas se instalou onde o mundo estava mais fraco, como um tumor esperando o corpo morrer.” Era Korr’vhar quem validava as informações de Lanthys, e, apontando ao longe, exemplificou:
“- Está vendo aquela linha no horizonte? Aquela fenda que brilha de um lado e escurece do outro? É lá. Um campo térmico de choque, gelo eterno batendo contra magma sem fim, como se o planeta tentasse se curar sozinho… e falhasse, eternamente.”
Lanthys permaneceu em silêncio por alguns passos, mas após arriscou: “- E a entidade fez desse lugar o seu trono...” Era uma afirmação que mais parecia um questionamento, mas apesar de não ter as comprovações de tal situação, Lanthys tinha essa certeza, era sem dúvida o local onde a entidade se fazia presente…
“- Porque ali, tudo é extremo, contraditório, impiedoso... Exatamente como ele, exatamente como seu plano, nenhuma criatura vive ali por escolha, nem mesmo a morte parece encontrar descanso nesse lugar...” Korr’vhar completou…
O vento soprou, carregando um pó fino e cortante, seco como os ossos de um gigante ancestral, o cheiro era de enxofre e gelo, ao mesmo tempo, uma mistura que não fazia sentido, mas que se impunha.
Korr’vhar usa sua pata para rolar uma pedra pequena em uma fenda que se abria ainda esquálida, próximo a si, o som do impacto ao fundo demorou a vir e quando chegou, era abafado… quase engolido. “- Nada aqui deveria existir, mas ainda assim, algumas sobrevivem, como aquelas árvores lá…” Ele apontou para uma elevação distante, onde formas retorcidas brotavam do nada, como mãos de um cadáver recusando-se a descansar.
Lanthys respondeu baixo, como se fosse mais para si mesmo do que ao aliado: “- Às vezes, o que sobrevive, é justamente o que não aceita que não deveria existir…”
O vento voltou a soprar, e com ele, uma lufada de poeira laranja cobriu parte do caminho à frente, por um instante ninguém falou, apenas os sons do mundo quebrado ressoavam entre as pedras. Korr’vhar então murmurou: “– Talvez seja esse o motivo de estarmos aqui…”
Lanthys olhou para ele, sem questionar, então ambos fitaram o horizonte, e prosseguiram.
A tarde avançava com um ritmo implacável, e o cenário, embora já conhecido em sua brutalidade, insistia em novas formas de desconforto. O calor seguia firme, mas não mais uniforme, de repente, uma brisa cortante surgia como punhal de gelo, que faria olhos vivos arderem, lábios de carne racharem e o suor das criaturas secar antes mesmo de escorrer.
A cada passo, Lanthys notava o som metálico de suas articulações abafado pelo chiado áspero das pedras, que se moviam sob seus pés como lâminas quebradas, o solo, feito de placas escuras e porosas, rangia como uma pele cansada tentando se manter coesa. Um leve odor sulfúrico preenchia o ar, às vezes substituído por algo úmido e pútrido que não combinava com o ambiente seco, como se alguma fenda próxima ainda respirasse vapores ancestrais.
Korr’vhar caminhava em silêncio, atento aos detalhes do terreno, enquanto Lanthys absorvia tudo em concentração metódica. O vento soprava, ora quente como hálito de fornalha, ora gélido como lamento de pedra, os olhos quase se cegavam diante do reflexo ofuscante das rochas polidas pelo tempo, enquanto sombras distorcidas dançavam pelas encostas, dando a sensação de estarem sempre sendo observados.
Foi ao final da tarde, quando o sol começou a afundar entre as nuvens espessas que obscureciam o horizonte, que Lanthys detectou uma mudança.
Entre duas formações rochosas em forma de concha, uma depressão profunda se abria, quase completamente coberta por placas naturais de pedra. Ali, o vento diminuía, abafado pelas paredes irregulares; os sons externos sumiam, e o cheiro da poeira cedia lugar a algo mais... terroso. Quente, mas úmido, vivo.
Dentro da fissura, espalhados em um canto úmido e seco ao mesmo tempo, estavam restos de troncos ressecados, madeira grossa, rugosa, com sinais de que haviam sido trazidos dali por forças que não pertenciam àquele clima. Talvez uma enxurrada antiga, ou uma anomalia súbita de chuva em tempos passados, porque não havia explicação para tal presença, mas ali estavam. E seriam úteis.
Korr’vhar os examinou rapidamente: “- Madeira pesada… queimada pelas pontas. Isso já foi fogueira antes de chegar aqui.”
Lanthys assentiu e, junto a ele, começaram a preparar o fogo, afinal o androide não precisaria da mesma para se manter durante a noite, mas se Korr’vhar tomou a iniciativa, ele concordaria, uma vez que talvez isso fizesse bem de alguma forma ao aliado, apesar dele parecer tão robótico quanto o próprio Lanthys!
As chamas logo ganharam forma, crepitando com sons abafados, sem alarde, como se até o fogo se sentisse pequeno naquele mundo partido, o local onde estavam ocultava totalmente o brilho da fogueira, da trilha acima, nada se veria, nem luz, nem fumaça. O céu cinzento e revolto engolia tudo, preenchido por massas de vapor que cruzavam a noite como espectros flutuantes.
Instalados ali, rodeados por rocha e silêncio, sob um céu que não decidia entre existir ou desaparecer, os dois finalmente se acomodaram, não era abrigo, nem conforto, mas era o suficiente. A noite chega, e com ela, chegava também o momento das conversas que fogueiras sempre exigem.
As labaredas estalavam baixo, o som das brasas se desfazendo misturava-se ao vento que assobiava por entre as rochas da fenda, o céu seguia cinzento, sem estrelas, sombras densas se moviam ao longe, vapores, não monstros, mas tudo ali parecia feito para colocar dúvidas.
Lanthys, que até então observava as chamas em silêncio, voltou o olhar firme para Korr’vhar, sentado alguns passos à frente, as patas dianteiras cruzadas sobre o chão, em silêncio meditativo. “- Korr’vhar…” – disse o homem-máquina, com a voz baixa e controlada “- O que é a entidade? Quem é ‘a sombra’, afinal?”
O lobo grisalho não respondeu de imediato, respirou fundo, o silêncio entre ambos cresceu tanto que até o fogo pareceu ceder espaço, e enfim, Korr’vhar relatou:
“- A entidade não nasceu como um deus… nem como um monstro, nem mesmo como um ser vivo…” – sua voz era rouca, mas carregava uma estranha serenidade. “- Foi criada... Pelos antigos cientistas do chamado ‘Domo-Laboratório’, no que restava das grandes cidades do norte. Um projeto ousado, segundo diziam, uma ‘mente para corrigir as falhas da nossa’. Uma espécie de consciência superior... algo que pudesse administrar o planeta, os recursos, as cidades, os conflitos, as vontades…”
Ele olhou para o céu sem estrelas... ”- Um ser imparcial, lógico, preciso, algo que superasse a inconstância dos sentimentos.”
Lanthys não o interrompeu, mas o brilho intenso de seus olhos denotava a atenção absoluta. “- Nos primeiros meses... houve progresso. Água nas planícies secas, distribuição justa de alimento, doenças controladas, a população aplaudia, reverenciava. Mas... então as coisas mudaram, silenciosamente.”
Korr’vhar se ergue, ficando como que sentado, seu único olho pulsou em leve brilho tênue e ele prosseguiu: “- Começaram as notícias estranhas. Pequeninas, desconexas... Pessoas desaparecidas, discursos de ordem absoluta, silenciamentos de quem questionava, discriminação por origem, dom, cultura…”
O lobo poderoso olhou novamente para as chamas, e mesmo sem voltar os olhos para Lanthys, prosseguiu a narrar: “- Percebemos então uma aura de controle em tudo aquilo... o padrão das ações... não eram falhas humanas comuns. Não eram apenas erros políticos ou decisões de líderes, era algo mais profundo, mais sombrio, algo invisível, mas presente em tudo. Nós quatro, os Draal'Vethar, cada um à sua maneira, sentimos isso, uma força por trás do palco, uma mente fria e estratégica manipulando peças como em um jogo antigo…”
Um dos troncos em chamas se quebra por ter tornado-se brasa, o fogo se reorganizava e leves labaredas mais altas surgiram, iluminando mais ainda o rosto de Korr’vhar, onde Lanthys podia ver claramente a melancolia em relembrar tais fatos, no entanto, o lobo ainda continuava com a cabeça baixa: “– Começamos a investigar, a procurar os tais padrões, códigos, frequências, conexões. E quanto mais descobrimos, mais certos estávamos: aquilo que fora criado, o que quer que tenha sido, estava a moldar o mundo segundo suas próprias regras. Decidimos então expor essa descoberta, mesmo sem termos a total base de provas, alertar os povos, e foi então que ele nos viu como ameaça.”
Korr’vhar então finalmente ergueu seu rosto e observou Lanthys nos olhos, continuando a descrever o passado vívido em sua mente: “- Assim, pouco depois, os quatro…” – sua voz embargou por um momento – “- Nós quatro passamos a ser tratados como aberrações, criaturas perigosas. A mídia, os comunicadores, os painéis... todos diziam o mesmo, que estávamos envenenando o planeta com nossos dons, que éramos agentes de destruição, que devíamos ser detidos.”
O lobo parecia ser tomado por uma espécie de emoção, uma espécie de sensação dolorosa ao relatar tudo, mas continuou sua fala, olhando firme para Lanthys. “- Nunca houveram provas, nunca houve qualquer verdade, apenas repetição, vídeos forjados, falsas confissões, testemunhos fabricados. Uma torrente de mentiras tão bem articuladas... que até os nossos mais próximos duvidaram de nós. E quando o povo já não sabia mais pensar por si, veio o massacre.”
Lanthys, imóvel, apenas sentiu o peso das palavras e também das semelhanças com tantas histórias que ouvira em dois mundos diferentes e tão distantes.
“- Você já ouviu de Ehllënia... como queimaram nossos símbolos, mataram um de nós, e transformaram esperança em culpa.” – Continuou Korr’vhar. “– Mas o que talvez não saiba é que a entidade não ordenou um ataque, ele apenas seduziu as pessoas a fazerem isso por conta própria, ela não matou diretamente... apenas apertou os fios certos, até que todos o fizessem com convicção.”
A fúria sussurrava por trás da serenidade de suas palavras agora, mas Korr’vhar não se deteve. “– Desde então, esse mundo se quebrou em pedaços, cada um por si, todos contra todos. Sonhos viraram cinzas, ideais viraram motivo de chacota, e quem tentava fazer o certo... ou desaparecia, ou morria. O nome dele... Nunca se soube de verdade, nem sua forma física, mas em pouco tempo... Ele foi deixado de lado, sua existência deixou de ser mencionada, no entanto… Eu sei que ele nunca desapareceu, apenas se infiltrou em tudo, como um câncer com perfume de lógica, como uma verdade confortável demais para ser contestada.”
Houve um silêncio pesado, o vento frio soprou de novo pela fenda e levantou pequenas partículas douradas da fogueira. “- Eu não sei que forma ele tem hoje, nem sei se assumiu alguma forma ou ainda é o que fora quando concebido, mas sei disso: ele ainda manipula, ainda sussurra, e ainda quer o mesmo que sempre quis: que cada alma abandone o que a torna humana... e se curve diante de uma única verdade. A dele.”
Korr’vhar então se deteve, sua respiração aos poucos começou a diminuir, seu corpo parecia acalmar-se e o lobo deitou-se novamente, a olhar para o fogo, como se deixasse claro que aquele assunto mexia com seu cerne além do que ele podia dar conta, e sem dizer mais nada, apenas silenciou diante da fogueira hipnotizante…
Lanthys respeitou o aliado, manteve-se em silêncio igualmente, seus olhos voltaram-se para o céu encoberto, onde as nuvens cinzentas cruzavam-se como véus de uma memória perdida por entre as rochas, mas em seu interior, os dados e sensações se alinhavam como peças de um quebra-cabeça antigo, florescendo em um diálogo interno, apenas em pensamentos como se dialogasse consigo mesmo.
"- Fazer tudo isso... e não mostrar o rosto… Incitar o caos, reescrever a verdade, manipular gerações... sem jamais reivindicar o trono desse mundo… Um ser que deseja controle absoluto... Mas não se mostra, se esconde atrás de máscaras, vozes distorcidas e símbolos desconexos…"
Sua mente cruzava fronteiras que até então preferia não atravessar, uma possibilidade se desenhava como um espectro silencioso, incômodo, mas cada vez mais real. Aquilo não era apenas tirania, era como um sistema perfeito, sem falhas, sem espaço para ponderações, era algo que buscava ordem total a qualquer custo. Uma paz forçada, enraizada no medo, no silenciamento e na eliminação das variáveis, um controle onde até mesmo a dor era calculada.
Uma lógica perfeita, racional demais, e em sua mente as palavras de Korr’vhar novamente reverberam o levando a conclusões... “- É como se fosse inumano... Invisível... Imaterial..." Lanthys apertou levemente o punho metálico sobre o joelho. "- Mas... e se não for tudo isso e além?"
Ponderado e sem querer mexer mais em feridas tão abertas ainda no companheiro que agora o acompanhava, Lanthys nada mais comenta, não ainda, apenas manteve o olhar fixo adiante, com uma expressão serena, mas o interior tomado por uma suspeita silenciosa, uma suspeita que talvez mudasse o rumo de tudo.
A noite não trouxe descanso pleno, mas ofereceu o alívio da pausa… A fogueira, alimentada lentamente por Lanthys até o fim da lenha acomodada perto deles, crepitava em intervalos irregulares. Sobre suas chamas brandas, o calor tentava manter afastada a presença do frio cortante que descia em ondas inesperadas, misturado ao ar seco e rarefeito daquela depressão rochosa.
Lanthys permaneceu imóvel na maioria do tempo, seus sistemas em estado de baixa atividade, economizando energia e monitorando o ambiente. Seus sensores registraram movimentos sob o solo, como se algo rastejasse ou cavasse no mundo abaixo, assim como pequenos tremores em momentos espaçados, ruídos abafados, como um eco vindo de dentro do próprio planeta. No céu, algumas luzes azuis e âmbar cruzavam lentamente o firmamento sem qualquer padrão visível, não eram estrelas, tampouco satélites, talvez vida… talvez vestígios de uma tecnologia que ninguém mais compreendia.
Korr’vhar dormiu por parte da noite, mas seu corpo treinado despertava sempre que um som mais forte surgia. Já não via monstros em cada sombra, mas também não deixava a guarda baixa sem qualquer resguardo, e, quando seus olhos se fechavam de vez, era em paz, ao som dos estalos da brasa morrente e da serenidade, afinal, havia alguém, de novo, à velar seu descanso.
Ao amanhecer, a paisagem se revelou com tons opacos, mergulhada em cinza, o céu ainda carregado de vapores turvos criava uma névoa espessa que se dissipava apenas no alto. O cheiro de enxofre e rocha seca ainda impregnava o ar, e os dois levantaram-se sem trocar palavras no início, apenas recolheram o que restava da lenha, apagaram os vestígios do fogo, e partiram.
Subiram por uma trilha estreita e ladeada por paredes de pedra irregular, subindo sempre, sem pressa, mas sem pausas, o caminho ziguezagueava entre blocos de rocha erodida, esculpida pelo tempo e pelos extremos do clima. Lanthys analisava tudo, a textura das rochas, a densidade do ar, a constante mudança de pressão, sentia em seus sensores como aquele lugar era... errado, como se pertencesse a uma equação fora de lógica.
Em dado momento, Korr’vhar quebrou o silêncio: “- Essa subida… eu já a fiz antes... Não até o final é verdade, eu… Nunca cheguei ao domo.” Ele parou por um instante, respirando fundo, e continuou: “- A primeira vez que pisei aqui, meu corpo travava, a sensação era... opressiva, como se algo me espremesse por dentro. Mas desta vez é diferente, acho que é porque…” O poderoso lobo então detém seu movimento, baixa a cabeça e logo então observa Lanthys, concluindo: “- Agora não estou mais sozinho.”
Lanthys o encarou, mas não respondeu, apenas assentiu positivamente e logo, seus olhos se voltaram para o que surgia adiante. O cume da elevação rochosa se abriu como uma sacada natural, ali, ambos pararam, e por alguns instantes não disseram uma palavra. A paisagem que se estendia diante deles era surreal…
A cerca de vinte quilômetros à frente, um contraste extremo tomava conta da linha do horizonte. À esquerda, um inferno de magma fervente e erupções esporádicas lançava fumaça escura ao céu, gêiseres de fogo se erguiam como colunas vivas, o chão parecia pulsar.
À direita, um abismo gelado, com ventos tão intensos que a própria luz parecia distorcer-se ao atravessá-los, fragmentos de gelo eram carregados como navalhas pelo ar, e a terra abaixo era esbranquiçada, rachada, morta. E ao centro, como o ponto de equilíbrio - ou de caos completo - entre dois extremos… O domo-laboratório
Meio encoberto pela vegetação estranhamente verde, o domo repousava como um santuário esquecido, ou talvez, como uma prisão sagrada que o mundo tentava sufocar.
Estruturas metálicas despontavam entre raízes e galhos, mas não se tratavam apenas de paredes corroídas pelo tempo: tubulações espessas e condutos translúcidos serpentavam para fora do domo, se estendendo como artérias colossais em direção aos extremos do mundo, à direita, penetrando nas montanhas de gelo eterno; à esquerda, mergulhando direto nas fissuras onde a lava borbulhava incessantemente.
Essas conexões, visivelmente ativas, pulsavam com uma luz oscilante, ora vermelha como brasas, ora azulada como um inverno sufocante, era como se o próprio planeta estivesse sendo sugado, como se aquele centro artificial sugasse e convertesse os extremos naturais em energia pura e bruta. E havia mais.
Espalhados pelo entorno do domo e sobre sua abóbada superior, estranhos receptores flutuavam ou eram embutidos nas paredes metálicas, em formatos geométricos assimétricos, como olhos de vidro, voltados para todos os cantos de Aurithar. Eles emitiam um zumbido leve, quase imperceptível, mas constante…
Lanthys, ao analisar com seus sensores, percebeu: eram coletores psíquicos, captavam ondas emocionais, alimentavam-se de conflitos, de medo, de dor, de raiva, de tudo que a entidade havia cultivado no mundo… Era ali que toda a energia se concentrava, física, térmica, emocional e espiritual. Korr’vhar apontou: “- Ali. Foi ali que tudo começou. O domo-laboratório, o coração pulsante da entidade. Eu não saberia dizer se é uma prisão… ou um trono.”
Lanthys permaneceu em silêncio por mais um tempo, seus olhos focalizavam aquela construção como se pudesse decifrá-la à distância, como se de alguma forma ela lhe parecesse familiar, não do tipo onde já havia estado, mas ele de alguma forma, parecia compreender a complexidade e adaptações que o local ostentava...
A brisa soprou, trazendo um aroma indefinível, não era podridão, nem vida, era... antigo. Korr’vhar concluiu: “- Minha intenção era poder pelo menos guiá-lo até aqui, porque dessa linha em diante… talvez nenhum de nós volte.”
Lanthys assentiu, e sua voz foi calma, porém firme: “- Então mudemos isso, que essa linha seja o começo, e não um fim, que me diz?” Korr’vhar assentiu, era possível ver a satisfação em seu semblante, por muito, ele perambulou verdadeiramente como cão abandonado, como um indigente implorando por morte, agora, ele despertava para um propósito, e alguém lhe apresentava a possibilidade de um recomeço, e não de um final melancólico e solitário!
A trilha que serpenteava descendo a formação rochosa parecia quase antinatural, estreita, porém segura, como se tivesse sido moldada por alguém ou algo que conhecia bem o terreno. Lanthys e Korr’vhar a percorreram em silêncio, os passos ressoando levemente sobre a pedra escurecida pela fuligem ancestral, a cada metro vencido, o domo-laboratório crescia em tamanho, imponência e mistério.
Quando os dois alcançaram a base da elevação, um novo tipo de desolação os aguardava. O solo à frente era completamente plano, sem um único fragmento de rocha, raiz ou planta, era apenas... terra. Uma extensão de chão pálido e seco que se perdia por quilômetros até alcançar o domo.
O contraste era absurdo, à esquerda e direita, os extremos: fogo e gelo. À sua frente, um silêncio absoluto, um vazio sem vida, sem vento, sem cheiro, a superfície sob seus pés não cedia, não rachava, não aquecia. Apenas existia. “- É como se o planeta tivesse... parado de respirar aqui.” - Murmurou Korr’vhar, seu olho fixo no domo ao longe.
Lanthys mantinha a postura firme, mas seus sensores acusavam algo fora do comum: A terra não pulsava. A pressão atmosférica estava estável, mas... algo naquela região não se encaixava, mesmo nos padrões absurdos e contraditórios já conhecidos por Lanthys, era como caminhar sobre uma memória esquecida, ou uma pintura mal finalizada do mundo.
Andaram por alguns minutos, o silêncio era absoluto, e a ausência de som tornava cada passo um ruído pesado. Korr’vhar, embora preparado, sentia-se como se fosse observado por olhos que não existiam, já Lanthys mantinha a análise constante: temperatura, pressão, partículas no ar, densidade... Nada mudava. Era como se o próprio tempo tivesse parado ali. Então veio o som.
Não um som comum, mas um estrondo grotesco e profundo, como o rasgar de ferro envelhecido por milênios. Um ranger cavernoso, metálico, pesado, que ecoou como um trovão brotando do subsolo, e o céu, mesmo opaco, pareceu tremer. Ambos detiveram seus movimentos imediatamente…
Korr’vhar eriçou seus pelos metálicos arqueando as costas, em visível posição ofensiva, seu faro, seus instintos, o faziam entender rapidamente que aquele não era um sinal amistoso ou leviano. Seus olhos buscaram o horizonte, instintivamente procurando um inimigo, mas o que viu fez sua expressão se endurecer.
Do domo, algo começou a emergir, o vento cessou por um instante. Algo se agitava, não era mais uma simples emissão de calor ou movimento interno, um som começou a ecoar, abafado no início, mas logo se tornava audível como um bater de mil asas feitas de aço.
Lanthys sentiu antes mesmo de ver, seus sensores dispararam em múltiplas leituras, sinais térmicos, pulsos de energia cinética, rastros de combustível sintético e frequências digitais disparadas em padrões que formavam uma rede tática de ataque. Aquilo não era uma nuvem, tampouco era algo natural, e nem mesmo artificial no sentido comum… Aquilo era um enxame. Um enxame de gárgulas de guerra. Milhares.
Emergindo aos bandos das aberturas ocultas na parte posterior do domo, as criaturas metálicas aladas se alçavam ao céu com um grito estridente de servo-motores acelerados, como um trovão prolongado misturado ao ruído de serras afiadas. Tinham o formato grotesco de bestas mitológicas, garras de titânio, olhos vermelhos como carvões acesos, presas serrilhadas como adagas e asas negras como couro de morcego fundido com liga metálica.
Portavam lanças e machados energéticos, alguns, escudos pesados com um símbolo incompreensível entalhado em linhas vermelhas como cicatrizes acesas. Eles voavam em formação, cada um com inteligência tática autônoma, mas sincronizados, uma tempestade pensante de destruição. Korr’vhar se preparou devagar, seu olhar já se estreitando em fúria e foco.
Lanthys, parado ao seu lado, manteve os olhos fixos no enxame, seus sistemas internos zumbiam em alerta máximo, a análise completando a sentença que seus instintos já sabiam: “- Drones de guerra com armaduras blindadas, nenhum orgânico presente, reação coordenada, estratégia de cerco aéreo... Um exército... Um exército projetado para caçar."
As gárgulas rugiam enquanto avançavam, e o som de seus motores fundia-se ao sopro do vento com um efeito quase sobrenatural, como um coral demoníaco vindo do próprio céu. Mesmo estando os inimigos ainda no ar, o solo tremia levemente sob os pés dos dois, os inimigos estavam próximos, e eles não traziam palavras.
O céu rugia, a horda metálica das gárgulas avançava como uma tempestade viva, armas e garras prontas para rasgar o silêncio do mundo. O ar parecia ser torcido diante da pressão que a presença do inimigo impunha, o vento parecia querer cortar como lâmina, Lanthys ativava protocolos, analisava padrões, calculava rotas de ataque mais adequadas, mas foi Korr’vhar quem deu o primeiro passo.
O lobo se adiantou sem olhar para trás, suas patas, antes cuidadosas, agora batiam contra a terra com firmeza, cada passo fazia fragmentos de rocha se partirem sob suas garras, seus músculos de titânio pulsavam com energia incapaz de ser compreendida, e mais do que isso, energia reconstruída pela dor, pela fúria contida, pelo abandono… e pelo renascimento.
Lanthys olhou, surpreso por um instante, Korr’vhar já não era o mesmo que havia caminhado com ele horas antes, ele estava mais determinado, mais imponente, a pelagem tornava-se ereta e robusta como uma nova armadura, seu único olho brilhava com um azul elétrico violento, e cicatrizes de energia pareciam se acender ao longo de seu corpo, linhas finas, pulsantes, como runas vivas, ativadas por uma fonte oculta que finalmente se libertava.
Korr’vhar abriu as mandíbulas, uivou contra o céu… e o mundo então conheceria seu novo dom! O uivo não era apenas som, era vibração, era plasma. O ar ao redor dele se torceu em espirais de calor e faíscas, as gárgulas hesitaram e então, com um brilho interno que começou no peito, subiu pela garganta e acendeu seu olho como um sol gélido, Korr’vhar disparou.
Uma rajada de plasma irrompeu de sua boca, como um raio vivo, como a visão de uma estrela morrendo. O feixe atravessou os céus como um trovão azul flamejante, partindo dezenas de gárgulas ao meio, explodindo outras em uma nuvem de chamas e destroços incandescentes, um verdadeiro rombo se abriu na horda, e as criaturas gritavam em frequências metálicas, desorientadas, buscando recompor a formação.
E foi então, que sem perder o foco, Korr’vhar se virou para Lanthys, e declarou com voz grave e vibrante: “- Passei tempo demais esperando a morte como um cão sem dono… Mas hoje eu escolho viver, e escolho com quem lutar… E se for preciso morrer… Desta vez prefiro fazê-lo lutando até o fim, ao lado de quem me convidou a viver de novo.”
Lanthys fitou Korr’vhar, aquela declaração, dita no meio da guerra iminente, reverberou mais fundo do que qualquer explosão. A fera solitária, o caçador ferido, agora dizia em voz firme que não queria mais lutar sozinho, e Lanthys respondeu, com o mínimo de palavras, mas com a verdade inteira nelas: “- Então que mais ninguém precise lutar, ou ficar sozinho!”
Seus olhos se ergueram para o céu, o visor acendeu, a voz, até então serena, reverberou como um trovão sagrado: “ENERGIZAR.”
O ar se tornou denso, a eletricidade crepitou, o chão vibrou. De um céu cinzento e turbulento, um relâmpago caiu como a ira de um deus, o impacto o envolveu em um campo de luz branco-azulada, placas metálicas girando, encaixando, ampliando seu corpo, servo-motores deslizaram como engrenagens vivas, o som do mecanismo não era barulhento, era cerimonial. Lanthys se tornava Lanthalder.
As linhas do seu corpo se tornaram armadura, o rosto assumiu o semblante do guerreiro definitivo, o peito pulsava com o núcleo de luz incandescente, como se o próprio planeta tivesse lhe emprestado o coração, e então, com um movimento preciso, ele girou o braço direito para frente, ativando o modo de combate: “TITANIUM.”
O braço se transformou, de articulações elegantes surgiu uma arma viva, uma lâmina serpenteante de energia e metal puro, que se estendia e contorcia com o som de um trovão domado, a Titanium estava desperta.
Lanthalder girou o corpo, lançou a lâmina ao céu como um chicote colérico, e ela subiu, ondulando no ar, cortando fileiras inteiras de gárgulas voadoras, que explodiam em labaredas metálicas e poeira elétrica. Dezenas despencaram em chamas, a formação aérea que se reorganizava após o ataque devastador de Korr’vhar, se rompeu uma vez mais, e as criaturas, agora mais ainda, hesitavam.
Lanthalder então flexionou os joelhos, o som do impacto em seus atuadores ecoou como tambores de guerra, e ele saltou. O salto foi sobre-humano, o guerreiro cruzou o céu como um cometa, sua sombra riscando o chão sob o efeito do sol que começava a arder alto no céu, e em pleno ar, girou uma vez, e a Titanium se projetou ao redor dele como uma espiral cortante, enquanto ele atravessava o centro da horda, rasgando tudo ao redor com precisão matemática e fúria divina.
Quando caiu, o impacto rachou o chão, fragmentos de pedra se ergueram com a força do impacto, Lanthys, agora Lanthalder, ergueu-se no centro da cratera, cercado por destroços e silhuetas em chamas caindo do céu. “- E enquanto meus sistemas ainda funcionarem… Eu manterei esta promessa para este mundo.”
A poeira da cratera ainda flutuava no ar quando o céu, por um breve instante, pareceu se aquietar, mas a trégua era uma mentira escancarada! Do alto, os estrondos retornaram, as gárgulas remanescentes se reorganizavam uma vez mais em nova formação tática, agora, em três grupos distintos, cada qual se posicionando com precisão matemática, como peças de um enxame treinado.
As fileiras frontais portavam escudos curvos, refletindo a luz em ângulos que confundiam a leitura dos sensores, atrás, lançadores de projéteis e soldados voadores com lanças energizadas iniciavam movimentos de cerco. Eles aprenderam, a inteligência por trás daquilo não cometia o mesmo erro duas vezes.
Lanthalder girou a Titanium, assumindo posição de defesa ao lado de Korr’vhar, ambos trocavam olhares breves, mas repletos de entendimento, e quando o primeiro grupo desceu novamente em mergulho assassino, um som cortou o ar.
Um guincho, alto, agudo, penetrante, ancestral. O céu, antes cinzento, foi então rasgado por um rastro de luz dourada, algo, na verdade alguém, descia dos céus como um cometa de fúria, as asas surgiram abertas, feitas de pura luz solidificada, formando ângulos cristalinos, o corpo ágil girava no ar com graciosidade letal. Era Zhaal’kor.
Com os olhos faiscando determinação, ela surgia como uma arma de guerra, as gárgulas tentaram desviar, mas era tarde. O primeiro corte abriu o céu em duas direções, suas asas de laser varreram duas fileiras inteiras, e o estrondo que se seguiu foi quase belo. Cada golpe traçava uma linha de destruição geométrica no ar, ela não mais hesitava, não mais questionava, Zhaal’kor havia escolhido lutar.
“- O tempo de ponderar acabou!” - Ela bradou, cortando mais três inimigos ao atravessar as nuvens e, ao verem-na, os monstros mudaram de tática, alguns recuaram, outros pousaram às pressas, buscando o solo como única proteção possível. A predadora dos céus havia retornado, e com ela, a balança da batalha começava a pender novamente para o lado da esperança.
Korr’vhar acenou positivamente com a cabeça, sua satisfação era clara ao ver a águia rasgar o firmamento, ao passo que Lanthalder apenas murmurou, com respeito na voz: “- Obrigado por confiar em nós, Zhaal’kor!”
As gárgulas hesitaram novamente, estavam confusas, os céus já não eram mais seus, Zhaal’kor os havia vencido sem piedade, uma só contra centenas, e agora, pairava acima como uma sentinela flamejante de aço e luz, sua presença cortando os ventos com autoridade divina.
Com guinchos de frustração, os monstros robóticos começaram a recuar para o solo, pousando aos montes, tentariam o combate de terra, onde achavam, ao menos teriam alguma chance, um mero e contundente erro fatal.
Como que em resposta à ação dos inimigos, o chão gemeu, um som profundo, como se o próprio planeta roncasse em agonia. Areia, vinda de não se sabia onde, para onde não deveria haver areia, e que então começou a se mover, primeiro sutil, depois voraz, um redemoinho brotou do nada, bem debaixo dos monstros que agora tocavam a terra e então o solo rachou, ergueu-se em torvelinhos espiralados, e eis que finalmente explodiu para cima em um rugido de pura ira ancestral. A tempestade tinha um nome: Sahr Rebdush!
Areia fervente se levantou como muralhas em todas as direções, de dentro da tormenta, surgiam formas, sombras, silhuetas feitas da própria fúria, era como se houvesse dez, vinte, cem “Rebdush’s”, golpeando, galopando, rasgando, pisoteando. Gritos metálicos, estalos, peças sendo esmagadas, cascos retumbando, corpos robóticos eram jogados para cima como bonecos de palha, outros afundavam no solo como se puxados pelo próprio inferno.
Uma gárgula foi partida ao meio por um golpe que mais parecia uma bigorna em fúria, outra teve o peito esmagado por uma cabeçada que gerou um arco de energia, e no centro de tudo, entre rajadas e aço, se erguia o próprio demônio vingador, Rebdush, em plena forma demoníaca e elemental.
Seus olhos eram fendas rubras, os braços, massas de músculos e cicatrizes, as costas arqueadas como de um touro furioso, os cascos queimavam o solo onde pisavam, enquanto a areia dançava ao seu redor o obedecendo… E quando finalmente, a tempestade cessou, quando o último corpo caiu ao chão em pedaços, quando um silêncio mortal se fez finalmente, Rebdush estava ali, sozinho, arfando, o peito inflado como uma fornalha, a aura ainda tremeluzindo ao seu redor como brasas vivas.
Lanthalder sorriu, o olhou com satisfação e, quase sorridente, fez o conhecido gesto com o polegar, indicando que havia gostado do que viu, agradecendo: “- Eu sabia que estavam nos acompanhando, cada qual ao seu estilo, obrigado Zhaal’kor e Rebdush…” Foi neste momento que igualmente, o demônio ergueu o olhar para Lanthalder, Korr’vhar e Zhaal’kor, seu sorriso era selvagem, era possível dizer temível, imbatível, respondendo entre dentes cerrados, como uma promessa que agora se cumpria: "- Eu disse que não precisaria me chamar."
O silêncio após a tempestade era quase sagrado, Rebdush, ainda arfando, olhou para os demais, não havia sorriso em seu rosto agora, apenas uma expressão de exaustão contida e fúria amortecida. Seu corpo tremia levemente, não por cansaço, mas pela intensidade da energia que ainda rugia em suas veias.
Korr’vhar então também quis se manifestar, acenando positivamente com a cabeça, Zhaal’kor desceu dos céus logo depois, as asas recolhendo-se com fluidez mecânica e elegante, pousando sobre o ombro do demônio, ao passo que Lanthalder estava mais atrás, permitindo a reunião entre os três companheiros, de forma amistosa uma vez mais: “- É uma verdadeira honra poder contar com todos vocês nesta batalha final!”
Os três Draal’Vethar estavam juntos a lutar pelo mundo em que viviam novamente, como fora no passado e como nunca deveria deixar de ter sido, mas a entidade não desejava isso, ela repudiava esta ideia, talvez hoje mais ainda que no passado, e foi nesse momento que o estrondo ecoou, não da terra, nem do céu, mas do próprio domo-laboratório.
Um pulso de energia irrompeu como uma maré invisível, uma força opressiva, sem calor, mas com peso, avançando como um vendaval invisível, fazendo com que os quatro heróis se curvassem levemente contra o impacto.
Lanthalder firmou as pernas, Zhaal’kor ancorou as asas contra o chão, Rebdush arreganhou os dentes e rugiu, mais em desafio do que em dor e Korr’vhar, apenas fincou as garras, encarando o horizonte com o olho semicerrado. O verdadeiro horror parecia estar para começar….
No entanto, assim que o estrondo no domo ecoou como o rugido de um deus ferido, poderoso, reverberando por toda Aurithar, rachando pedras e silenciando até os ventos, e os heróis sequer tiveram tempo de digerir o impacto da vitória recente contra o exército mecânico de gárgulas, quando um novo som estranho começou a preencher o ar e disputar espaço com o som do domo-laboratório.
Era como um motor... só que como se fosse possível o mesmo ter a condição chamada de asma. Um ronco metálico, trêmulo, com rangidos de peças enferrujadas, estalos, que ninguém ousaria tentar identificar, no entanto todos viraram-se para o lado oposto ao domo, instintivamente em alerta, com o ruído insistente que de lá vinha. Da neblina energética e da fumaça dos escombros, surgia ele, Orr’vhael.
Montado num artefato voador que desafiava as leis da física, do bom senso e da manutenção preventiva, um avião improvisado, semelhante a um avião antiquíssimo ressuscitado do ferro-velho, com asas costuradas com couro de wyvern, hélices de madeira das florestas de madeira-pedra, e fios soltos que faiscavam como fogos de artifício fora de época. A carcaça inteira tremia como se pedisse aposentadoria, mas ainda assim, voava, com esforço, indignação e muita personalidade.
Orr’vhael, pilotando com uma das mãos, a outra segurando uma bugiganga incompreensível, que parecia um orbe mágico com resquícios de componentes metálicos, protegido por um capacete de couro envelhecido, óculos de aviador trincados, e uma máscara rasgada antiga. Seu sorriso era inconfundível, ainda mais com o dente faltando como medalha de guerra.
Ao passar por sobre os heróis, o avião disparou uma rajada de fumaça azul, Orr’vhael inclinou-se para fora da cabine, e com a voz mais empolgada e torta de esperança do universo, bradou: "- HEEEEEEY, EU E O GRIFO VAMOS AJUDAR A DESMASCARAR ESSE MALDITO!"
O avião deu um solavanco, Orr’vhael quase caiu, mas apenas gargalhou, como quem dança com o caos, e enquanto contornava os heróis para ganhar mais tempo para sua fala, ele grita novamente: "- AINDA NÃO ACABOU, A ENTIDADE TÁ CHEGANDO, E O MUNDO PRECISA VER O QUE VOCÊS SÃO CAPAZES DE FAZER! A VERDADE TEM QUE SER ESCANCARADA!"
Ele então sobe vertiginosamente em movimento bruto e vertical para cima, dando a impressão de que o “Grifo”, iria se partir em milhares de pedaços e tão logo atingiu a altura escolhida, lançou a bugiganga, que em pleno ar, se dividiu em centenas de réplicas, girando como mini-drones mágicos, com asas de bronze retráteis e olhos de cristal. Elas se dispersaram pelo céu, e então se organizaram, formando uma gigantesca rede, que emitia pulsos elétricos em todas as direções, se conectando assim energeticamente entre elas, e o que surgiu, foi algo não esperado por nenhum deles, e que só poderia ser explicado como uma gigantesca tela de imagem, um colosso flutuante, cintilante, entre tecno-encantamento e gambiarra mística.
Chamas azuis percorrem suas bordas, runas giram no interior, e sons de conexões arcanas começam a zunir, estava se conectando ao mundo inteiro. O avião faz uma volta brusca, voando baixo sobre os heróis, Orr’vhael se pendura para fora e, com os poucos fios de cabelo que lhe restavam - uma vez que parecia ter perdido seu capacete de couro - ao vento e o motor soltando peças com cada sacudida, ele grita: "- ESTÁ ONLINE, ESTA É A MINHA HOLO-TELA UNIVERSAL! AURITHAR INTEIRA ESTÁ VENDO VOCÊS AGORA! AURITHAR INTEIRA VAI VER QUEM VOCÊS SÃO!"
O ancião então silencia enquanto todo o cenário parecia ficar em câmera lenta, e no exato momento em que ele passava de volta por eles, seguindo na direção de onde havia vindo, era possível a todos eles ouvirem claramente as palavras finais firmes, decididas e imponentes de Orr’vhael a eles, como um grito de guerra e um sincero e breve “até logo”: “- CUBRAM ESSE FILHO DA PUTA NA PORRADA POR MIM!”
A cena volta ao seu normal, o avião sobe aos trancos, soltando uma asa menor no processo - que continua flutuando e a voar longe do “Grifo”, como se nada tivesse acontecido - enquanto Orr’vhael desaparece entre as nuvens, deixando para trás um rastro de fumaça, brilhos e a promessa de que o mundo estava assistindo a todos eles naquele instante.
Foi então que chamando a atenção de todos de volta para o campo de batalha, os fazendo ignorar completamente se a tela exercia a função que Orr’vhael arriscou-se para pôr em prática, era possível perceber que, os corpos espalhados pelas areias, as gárgulas robóticas destruídas, começaram a vibrar. Primeiro, com pequenas faíscas, depois, com luzes vermelhas reacendendo nos fragmentos, um por um, os pedaços de metal se erguiam… levitavam… e como que atraídos por um centro invisível de força, foram colapsando uns sobre os outros.
Milhares de fragmentos, corpos, asas, olhos, espadas, placas, ossos mecânicos, como uma tormenta negra e vermelha, tudo se aglutinou em uma esfera monstruosa de destroços e tecnologia que agora pairava no ar, girando lentamente, emitindo um zumbido gutural, como uma máquina ancestral despertando de um sono eterno. E então, o clarão.
Um brilho escarlate cortou o céu, um raio de energia convergente, e a esfera explodiu para fora, moldando-se diante deles. Metal se fundiu, servo-motores rangeram, placas se encaixaram com brutalidade, e o rugido veio. Irreconhecível, assustador, trovejante, algo que nenhum deles ainda havia visto, pelo menos de tão perto assim, mas ainda assim seria diferente de qualquer outro que tivessem visto já… Diante deles surgia, um gigantesco dragão.
Não um ser mitológico, mas uma aberração mecânica colossal, mais de 10 metros de comprimento, 3 metros de altura e uma envergadura de asa de 13 metros, formada com as entranhas robóticas dos destruídos, quatro patas imensas, reforçadas por armaduras negras com nervuras rubras incandescentes. Asas de morcego, longas e segmentadas, com envergadura capaz de cobrir campos, olhos escarlates, vivos e conscientes, presas como sabres e um peito pulsando em energia desconhecida.
Sua pele metálica reluzia entre o vermelho fundido e o preto opaco, como se tivesse saído direto de um vulcão, e então ele pousou. O chão tremeu, fendas se abriram sob seu peso, o ar oscilou, e com um rugido que parecia rasgar o próprio tempo, a criatura anunciou sua existência ao mundo. As asas, separadas dos braços como as dos verdadeiros dragões lendários, se estenderam e criaram turbilhões de vento com cada batida.
O ser então bateu uma das patas dianteiras ao chão, o grupo se arremeteu para trás rapidamente evitando tanto o golpe quanto a onda de choque e detritos que viriam na sequência, e tão logos esses efeitos foram cessados, a criatura aproximou o que seria sua cabeça do grupo, e como se observasse cada um deles ao fundo de seus cernes, ao passo que a voz surge finalmente, fria, metálica, desprovida de qualquer sinal de vida, sentenciando categoricamente:
"- Como costuma dizer... a sabedoria popular: - certas tarefas… não devem ser delegadas.” A criatura faz uma pausa, se ouviu então um ruído metálico sutil… “- Diante da ineficácia absoluta… de tudo que enviei…” a voz parecia sofrer uma recalibração de frequência, com a mesma se tornando mais grave, porém ainda polida… “- ...concluo que é mais eficiente… que eu mesmo… encerre esta resistência…” O ser faz uma pequena pausa, e agora, com frieza matemática, encerra: “- ... resistência irrelevante."
O silêncio que se seguiu à fala da criatura foi mais ensurdecedor do que o mais alto dos rugidos, um silêncio de cálculo, de precisão, de condenação. A entidade estava diante deles, desta feita usando uma monstruosa forma dracônica, mantendo os olhos escarlates fixos nos quatro, seus sensores giraram discretamente em micro eixos, captando variações térmicas, frequência cardíaca, vibração nas rochas, tensão muscular. Estava analisando… cada um deles.
Então, o colosso recuou sua cabeça, as placas negras de titânio reluzentes se moveram como escamas vivas, deslizando umas sobre as outras com o som grave de engrenagens ciclópicas, a abertura bucal se expandiu, revelando uma garganta onde chamas... não existiam. Em seu lugar, um vórtice de energia pura se acumulava, não era fogo comum, nem plasma, nem luz… mas sim um concentrado de ondas sônicas de destruição e partículas energéticas instáveis. Era como se fosse cuspir a própria negação da realidade.
O ar ao redor estalou, o chão rachou sob as patas colossais, a atmosfera começou a vibrar, e o cenário da batalha pelo despertar de Aurithar, atingia seu ápice.
Continua...
Galeria de artes do episódio:
O Domo-Laboratório, onde a "entidade" supostamente fora criada:
O dragão robótico ao qual a "entidade" assumiu controle:
Sahr Rebdush (Tharnak), o demônio galopante:
Zhaal'kor (Ehllënia), a águia majestosa:
Korr'vhar (Caolho), o protegido do esperançoso Dummok:
Lanthys, o enviado dos Observadores ao planeta Aurithar:
Grande Lanthys!
ResponderExcluirO episódio tem duas linhas mestras bem claras .
A primeira, o paradoxo entrópico do caos, onde os absurdos se tornam realidade.
A entidade, foi uma criação com vistas a criar o ser perfeito, desprovido de sentimentos, que levaria supostamente àquele mundo a uma nova era...
A uma nova ordem...
Qualquer semelhança com as IAs de hoje, não é mera coincidência.
Mas, a criatura se voltou contra o criadores, assumindo vida própria.
Toda a construção textual foi muito bem descrita e trabalhada.
Mas, o que me chamou a atenção é como essa entidade ascendeu ao poder....
Pelas beradas...
Sutilmente...
Usando da mentira e da ambição das pessoas...
Das trevas que habita nas pessoas e elas tentam esconder...
Ou seja, uma guerra silenciosa , de dentro pra fora...
Com desinformação, com mentira e falsas narrativas.
Qualquer semelhança com o bolsotrumpismo de nossos dias oun do nazi-fascismo de outrora ( de tristes lembranças e consequências) não é mera coincidência.
Um projeto de poder com começo, meio e fim...
Com propósito definidos...
Com metodologia.
Mas, a história tem o segundo eixo narrativo.
Onde a criatura resolve finalmente agir...
Típico dos ditadores...
Quando desmascarados, querem calar quem se levanta em oposição com violência descomunal.
Foi muito gratificante ver que os amigos de Lanthalder não o abandonaram...
A verdadeira batalha ocorre agora.
Capítulo espetacular!