quarta-feira, 9 de julho de 2025

Nipo Rangers "Utopia do Mal" - Cap. 10 - Reflexão, e decisão!


O ruído suave do reativar de sistemas começou como um sussurro metálico. Dados, leituras de telemetria, localização, status operacional... uma enxurrada de informações trafegava como sinapses em caos, congestionando os circuitos por um breve instante. A energia começava a fluir, lenta, mas estável, e com isso, seus olhos se abriram parcialmente, processando a luz, tentando compreender o que havia acontecido.

Com esforço contido, ergueu a mão direita diante do rosto... depois a esquerda. Estava deitado. Sua visão se ajustava, e então ele os viu: dezenas de pequenos rostos reunidos ao seu redor, formando um círculo silencioso de expectativa. Crianças e aldeões o observavam com olhos arregalados, entre o espanto e a esperança. Em segundos, os sistemas internos completaram o diagnóstico, o informando de tudo que havia decorrido entre a falha total de energia e o reativar dos sistemas.

* Estado Atual: Ativação de emergência concluída com sucesso.
* Interface em uso: Lanthys - forma humanoide de contenção restaurada em 63%.
* Potencial de combate: Reduzido temporariamente. Estimativa de 27 a 33 minutos para restauração total das funções ofensivas e defensivas, 4 a 6 horas para carga total de energia da unidade.
* Registro Crítico Identificado: Durante o evento “PROTON CANON ÔMEGA BLAST”, houve uma sobrecarga simultânea nos núcleos de conversão primários e nas subcamadas energéticas auxiliares.
* Origem da sobrecarga: transmissão externa de energia massiva proveniente de entidades aliadas codificadas como KORR'VHAR, REBDUSH e ZHAAL'KOR.
* Resultado imediato: colapso funcional temporário e falha generalizada do sistema.
* Anomalia Detectada: Apesar do cenário de falência energética total, sinais de aceleração espontânea do protocolo de nano regeneração foram observados.
* Causa: desconhecida. A energia transmitida, combinada à carga interna de Lanthalder, provocou um efeito paradoxal, desgastando e restaurando os sistemas de forma simultânea.
* Nota: Os dados disponíveis são insuficientes para determinar a natureza exata da recuperação acelerada. Sugestão: registrar como fenômeno inexplicado - categoria/código: Esperança.
* Recomendações do Sistema:
Evitar uso de habilidades de categoria nuclear-estratégica nas próximas 2 horas.
– Permitir estabilização plena do protocolo TITANIUM.
– Permanecer em modo Lanthys até segunda avaliação.
* Resumo Final: Você foi mantido operacional por um fator que extrapola as métricas racionais da análise sistêmica.
* Status atual: Vivo/Ativo. Aguardando sua próxima ordem.

Os pequenos rostos mudaram de expressão instantaneamente. Eles corriam, riam, erguiam as mãos e avisavam aos demais e logo, uma multidão de aldeões cercava o corpo ainda em repouso de Lanthys, observando-o com curiosidade. Mas a marca mais evidente em cada um deles era a felicidade e uma esperança silenciosa por estarem vivos. Mesmo para um homem-máquina, era impossível ignorar a descarga emocional que emanava daqueles seres.

- Vivo... ativo... por algo que não deveria ser possível. Três seres me deram o que restava de si, não para tentarmos... mas para que eu tivesse uma chance real de salvar. E mesmo a máquina não entende o porquê... talvez esperança não se codifique.

Lanthys então observa lentamente os próprios braços, onde uma luz tênue ainda pulsava, a energia ressoando suavemente pelas veias metálicas. Seus olhos percorrem o entorno... e o que vê o faz prender a respiração por um instante.

“- Eles também... Estão vivos… todos eles…”

Fogos improvisados eram lançados, não ao céu, mas ao redor, como espirais de cor celebrando a terra. Tecidos coloridos surgiram nos muros, cordões com sinos tilintavam nas casas e cada batida era um coração agradecido; alimentos estavam sendo preparados para serem partilhados, não em banquetes, mas em gestos, o pouco se transformava em símbolo de partilha e reconstrução. E nenhuma voz de temor… apenas felicidade, alívio, e olhos que ainda brilhavam.

“- Ao fim de tudo, não foi força. Foi cálculo, astúcia, união… e esperança.”

Ele abaixa os braços, os dedos trêmulos se cerrando em punho. Lanthys permaneceu imóvel por alguns segundos e então, como se um sorriso determinado se insinuasse em seu rosto, completou:

“- Se é isso que chamam de milagre, então que seja. O que sinto... é que eles confiaram. Principalmente os três. Agora... vou honrar cada fragmento dessa confiança, e desenterrar a esperança perdida deste planeta, antes que mais alguém precise se sacrificar até esse ponto.”

A movimentação em torno do androide chama a atenção dos três, reunidos a poucos passos dali. Pela primeira vez, em muito tempo - talvez desde que pisara neste mundo - Lanthys sente algo raro: tranquilidade e paz. Ele observa Zhaal’kor pousar sobre um galho próximo, enquanto Rebdush se recosta na mesma árvore, braços cruzados. Já Korr’vhar se aproxima, passo a passo, até o homem-máquina que começava a se erguer, ainda com lentidão, até ficar diante deles.

Korr’vhar faz um aceno silencioso com a cabeça. Rebdush responde com um gesto semelhante. Já Zhaal’kor o observa fixamente, mas, diferente das outras vezes, Lanthys não vê em seus olhos a habitual cautela ou desconfiança. Havia surpresa, surpresa sincera. Como se a águia estivesse diante de algo que nem mesmo ela, com toda sua sabedoria, conseguia explicar.

Lanthys então sorri com leveza, retribui o gesto e diz com voz serena: “- Me perdoem por não ter sido suficiente para enfrentar tudo sozinho, por ter pedido que dividissem suas forças comigo, mas bem mais do que admitir minha limitação… quero agradecer. Foram as suas forças que salvaram essas vidas. E isso... eu vos agradeço com toda minha sinceridade."

Korr’vhar se senta lentamente. Olha para os dois companheiros, como quem mede o momento, e então volta-se a Lanthys: “- Se alguém aqui deve agradecer… somos nós. Vingança… desistência… mágoa. Isso é o que nos definiu por anos à perder de vista. E em nenhum lugar encontrávamos o que buscávamos. Mas então... você surgiu.”

Rebdush se afasta da árvore, gesticulando com entusiasmo: “- E fez um filhote beaver desconfiado arriscar a própria vida por você, um velho beaver ouvir alguém além dele mesmo, e um adulto e líder, ponderar sobre tudo isso! Nunca vi um beaver se envolver em qualquer coisa que não fosse, se proteger e aos seus…. Aquilo mexeu comigo, me fez questionar se vingança era mesmo tudo o que me restava. E foi por isso que decidi seguir você. De longe, no começo… mas sem conseguir parar!"

Zhaal’kor, com sua voz firme e ressoante, interrompe: “- Não há lógica nas suas ações. Nenhum cálculo. Nenhuma vantagem. Proteger o sonho de um velho... enfrentar milhares apenas para sustentar um ideal… Antes mesmo de você lutar para manter em pé a casa de Orr’vhael, ele já acreditava em você. E isso mesmo sem ter demonstrado esse tipo de atitude intensa nem mesmo para comigo... O velho é sábio, então por que ele acreditou tão rápido? O que ele viu em você que eu ainda não consigo enxergar? Isso me fez querer compreender. Mesmo com tudo que vi… arriscar-se por um povo que sequer conhecia… Ainda me custa crer que alguém aja assim… neste mundo.”

Korr’vhar baixa levemente a cabeça, e continua: “- Eu havia desistido de tudo, inclusive de me manter vivo… Mas encontrei Dummok... e algo despertou em meu cerne ao ver a atitude dele. Quando você interrompeu sua missão para salvar meu salvador, não consegui ignorar. Como alguém faz isso? Por que? Que motivações o movem? Foi ali que percebi: talvez algo realmente estivesse mudando, e quis ficar e entender, comecei a te observar, queria saber... até onde você iria."

O silêncio paira entre os quatro, Lanthys observa aos três, seus olhos percorrem cada um deles antes de responder: “- Eu não tenho uma grande explicação. Eu apenas fiz o que parecia certo. Proteger. Acreditar no melhor. Ter esperança de que, um dia, qualquer mundo possa alcançar justiça e paz reais e realmente não precise mais de seres como nós para garanti-las. Mas este mundo ainda precisa. Precisa que alguém faça nascer o que está enterrado dentro das pessoas… que as contamine com o desejo de fazer o certo. De cuidar. De proteger. De acreditar. É só isso que quero. Trazer de volta a esperança, para quem ainda busca por ela.

Eis que, subitamente, uma comitiva dos Vaarikhen aproxima-se, interrompendo o diálogo. À frente, caminhavam o garoto que primeiro avistou a movimentação de Thuram’kar e a jovem que, com coragem e ternura, havia entregado uma flor a Lanthys. Em suas mãos, uma pequena oferenda rudimentar, carregada de simbolismo e gratidão, logo atrás, Berham seguia acompanhado por outros anciãos e adultos da aldeia, todos em visível estado de reverência e profunda emoção.

Assim que se detêm diante de Lanthys, Berham e os demais se ajoelham com as mãos estendidas em direção ao homem-máquina, proferindo palavras solenes. Falavam em uma variação do idioma local, mas já compreensível aos sistemas linguísticos de Lanthys, que, analisando seus vocábulos com precisão, compreende de imediato o significado: era uma declaração clara de devoção, agradecimento… e fé.

“- Ó grande Vhalturian… Tua sombra não nos trouxe temor, mas abrigo. Teu brilho não nos cegou, mas revelou o caminho. Quando o solo estremeceu e o céu sangrou fogo, sabíamos… não era o fim. Era tua chegada. As canções antigas falavam da fúria que viria como juízo… mas esqueceram de contar sobre tua misericórdia. Com nossos olhos testemunhamos o colosso tombar, não por tua ira, mas por tua compaixão. Ofertamos o que temos, grãos, tintas, frutos, cantos… e o mais puro de nossos corações, pois a vida que respira em nossos filhos agora, é um presente teu. Não pedimos explicações, pois a fé não exige palavras. Pedimos apenas que nos permita seguir sob tua presença, mesmo que em silêncio… Pois se tu caminhas entre nós, o amanhã já não é mais trevas.”

Lanthys lança um olhar aos três companheiros, e em seus semblantes, encontra o incentivo silencioso para tomar a dianteira. Ciente, porém, da delicadeza daquela situação, o homem-máquina sabia que não podia destruir a fé que sustentava aquele povo, tampouco assumir uma divindade que ele mesmo não reconhecia em si. Então, com passos firmes e respeitosos, aproximou-se de Berham, ajoelhou-se diante dele, e com um gesto suave, pousou as mãos sobre seus ombros, erguendo-o delicadamente da posição de reverência. Em seguida, com um aceno gentil, convidou todos os outros a se levantarem também.

Um a um, os Vaarikhen se puseram de pé, ainda confusos, seus olhares buscando entender por que um deus lhes pediria que abandonassem o gesto de adoração. E foi somente quando o último deles estava de pé, em silêncio absoluto e reverente, que Lanthys se pronunciou, surpreendendo não apenas o povo, mas também os três companheiros ao seu redor, com suas palavras selecionadas de forma perfeita:

“- Levantem-se, por favor. Nenhum ser deveria se ajoelhar para existir em paz. Eu não sou Vhalturian... Mas eu sei onde ele está… Ele vive, não está no céu ou nos relâmpagos, ele está em vocês. Talvez eu tenha sido apenas um instrumento… uma fagulha. Mas a chama que garantiu a sobrevivência de todos? A chama sempre esteve em seus corações.

O androide toca o próprio peito, onde ainda pulsava uma luz tênue de energia residual de sua restauração de sistemas, indicando ser algo real e palpável, diferente do que seria uma divindade, aos olhos dos Vaarikhen, e continua…

“- O que aconteceu aqui não foi um milagre meu, foi a resposta à fé de um povo que não desistiu, mesmo na escuridão. Se houve poder em mim, foi porque vocês acreditaram. Vhalturian… nunca partiu. Ele desperta toda vez que alguém escolhe proteger em vez de destruir, perdoar em vez de ferir, acreditar mesmo quando tudo parece perdido. Sigam firmes, ele está em cada gesto de coragem, em cada coração que pulsa por um amanhã melhor.”

Por alguns instantes, o silêncio pairou absoluto sobre a clareira. Nem mesmo o vento ousava interromper aquele momento sagrado. Berham, ainda com as mãos próximas ao peito, olhou para Lanthys com os olhos marejados, ele não compreendia tudo o que fora dito, mas entendia o coração daquelas palavras. Lentamente, ajoelhou-se uma última vez - não em adoração, mas em profundo respeito e gratidão - e então se ergueu com a coluna reta e o peito aberto, como quem carrega agora um propósito novo.

A pequena menina que havia ofertado a flor, levou a mão ao peito, e depois a estendeu para Lanthys com um sorriso puro, como se dissesse: “entendi”! Outros Vaarikhen imitaram o gesto, dezenas, depois centenas, não havia mais reverência, apenas reconhecimento, a crença se transformava diante dos olhos de todos, não morria, evoluía.

E logo depois de Lanthys, os três aliados poderosos, eles que já duvidaram, que já sofreram, que já lutaram… Korr’vhar assentiu levemente, seu único e radiante olho rareando a rigidez habitual… Pela primeira vez em muito tempo, ele não sentia necessidade de se explicar ou proteger, ele confiava.

Sahr Rebdush, com os braços cruzados e expressão sempre provocadora, agora tinha o olhar voltado ao chão, pensativo. Um grunhido breve escapou-lhe, mais de aprovação do que de sarcasmo, ele não sabia definir o que sentia, só sabia que era… revigorante.

E Zhaal’kor, pousada em um galho curvado pelo tempo, manteve-se imóvel, observando com atenção quase reverente. Em seus olhos dourados, antes duros como lâminas, havia agora uma centelha de dúvida, não sobre Lanthys, mas sobre o mundo e como, talvez, apenas talvez… as coisas realmente pudessem mudar.

Berham, agora com o semblante mais leve e um brilho novo no olhar, se aproximou de Lanthys com um sorriso franco e uma reverência breve, não mais de joelhos, mas com a postura firme de um homem grato: "- Se me permite, grande viajante…” - disse ele, e olhou para os outros três igualmente - “-... gostaria de mostrar a vocês tudo o que conseguimos preservar… tudo o que ainda somos. Sigam-me, por favor."

O grupo começou a caminhar pela vila ao som de sinos artesanais que tilintavam entre fitas de cores vivas, estendidas de casa em casa como pontes de esperança. Crianças correram adiante, jogando pétalas secas e flores colhidas das estufas do deserto no chão à frente dos quatro. Cada passo deles era acompanhado por um rastro de cor, perfume e calor fraterno.

As casas simples, de madeira escurecida e pedra talhada, exibiam pequenos enfeites em suas portas, amuletos trançados; sementes consagradas e objetos deixados por entes queridos que se foram, agora ornamentavam entradas como promessas de recomeço. Os aldeões os acompanhavam, não mais em silêncio, mas com sorrisos tímidos e palavras gentis.

"- Aqui vive Marith, nossa parteira, que salvou mais vidas do que podemos contar…"

"- Este é Kerdan, ferreiro, e foi ele quem ergueu os arcos de proteção…"

"- Ali, a estufa de Nerah, onde mesmo nos piores dias, ainda floresciam ervas de cura…"

Cada morador, cada nome, cada pequena história, Berham fazia questão de partilhar tudo. Como se dissesse: “Esta é a vida que vocês salvaram, estes são os rostos da esperança que renasceu.

Por onde passavam, mãos os tocavam, cabeças se curvavam, eles não pediram reverência, mas a esperança, quando renasce, exige símbolos e era como aquele povo humilde e inocente sabia se expressar… Korr’vhar, ao receber um pedaço de carne seca das mãos de um ancião, abaixou a cabeça em agradecimento. Rebdush aceitou, surpreso, um colar artesanal feito de ossos de caça. Zhaal’kor foi envolvida por uma dança circular de crianças com fitas douradas, se notava claramente, aquele parecia ser o dia mais feliz em muitos dias de existência do vilarejo milenar!

Em determinado momento, o grupo foi conduzido até o coração da aldeia, onde se erguia o altar dedicado a Vhalturian. A antiga estrutura de pedra, simples, mas sagrada aos olhos daquele povo, exalava ainda um brilho azulado tênue, pulsando suavemente como se respirasse com o mundo.

Lanthys se aproximou em silêncio. Seus sensores se ativaram, analisando o ambiente, e por um breve instante, sua expressão mudou, um vislumbre de entendimento, de descoberta. Havia algo ali... algo importante. Mas ele nada disse, apenas manteve o semblante sereno e acompanhou os aldeões com a mesma gentileza de antes, guardando para si o que havia compreendido.

E então, ao final do passeio, o líder da tribo os conduziu até uma clareira iluminada por uma grande fogueira central, onde dançarinos giravam com mantos pintados, entoando canções antigas, que falavam de espíritos das estrelas, da luz após a tempestade, da fé nos ventos que voltam. Colchas bordadas foram estendidas ao chão como assentos de honra, e em volta delas, travessas de madeira com frutas secas, pães rústicos, raízes cozidas e pequenos pedaços de carne assada. Simples, mas preparados com esmero.

Berham então ergueu os braços e anunciou: “- Hoje, os fogos não são para espantar as trevas, mas para celebrar aqueles que as venceram!” Os aldeões aplaudiram, e um coro de vozes, ora desafinadas, ora emocionadas, entoou um cântico de louvor improvisado, onde não havia nomes, mas versos sobre coragem, união e renascimento.

Korr’vhar se sentou devagar, observando as crianças correrem ao redor com flores presas aos pulsos. Rebdush deu uma risada breve quando um pequeno lhe ofereceu uma fruta maior do que a própria mão, e até Zhaal’kor, em sua postura altiva, pareceu não hesitar antes de aceitar um colar feito de sementes e penas azuis entregue por uma menina sorridente.

E Lanthalder, ou melhor, Lanthys, sentou-se por fim. Não como um deus, nem como um soldado, mas como parte daquele momento, e enquanto o calor da fogueira aquecia seus sistemas ainda em restauração, ele percebeu… que talvez ali, entre aquelas pessoas simples, o milagre que ele tanto buscava já tivesse começado ou talvez nunca deixado de existir.

A noite avançava, e com ela o ritmo da festa mudava, a euforia da chegada se convertia em celebração serena, os cantos se tornavam mais harmônicos, os tambores tocavam em cadência profunda, como se ressoassem com o próprio coração da aldeia. Flautas de bambu entoavam melodias simples, ancestrais, enquanto pequenos instrumentos de corda, improvisados com madeira e nervuras de animais, davam cor à música.

As chamas da fogueira central dançavam, lançando sombras longas pelas árvores e muros, tingindo de dourado os rostos sorridentes ao redor. Alguns dos mais velhos já haviam se recolhido, mas as crianças, enfeitiçadas pela noite mágica, continuavam dançando, enroladas em mantos coloridos, como se estivessem imitando os ventos e acontecimentos de Aurithar.

Os quatro permaneciam juntos, sentados em meia-lua ao redor da fogueira, com pequenos recipientes de barro entre eles, contendo frutas, raízes, chás de coloração forte. Ninguém os abordava diretamente agora, era como se, instintivamente, a aldeia compreendesse que aquele era um momento deles, de silêncio entre gigantes. Foi Korr’vhar quem quebrou a ausência de palavras, com sua voz rouca e direta, mas não rude:

“- Então, Lanthys... Agora que os gritos cessaram, que os olhos se voltam para a frente e não mais para o céu... o que você pretende fazer?”

O som dos tambores continuava ao fundo, suave e ritmado, como se embalasse não apenas a dança, mas também aquela conversa que nascia entre sobreviventes. O olhar de Korr’vhar era sério, mas não duro, havia uma pontada de curiosidade genuína, a mesma que move quem, por tanto tempo, caminhou no escuro e de repente vê uma tocha acesa à frente, como o próprio Korr’vhar o fez, ao seguir Lanthys desde a cidade decadente….

Zhaal’kor observava em silêncio, as asas recolhidas, o olhar pousado sobre a chama; Rebdush, de pernas cruzadas, mordiscava distraidamente um fruto adocicado, atento, todos aguardavam a resposta. O mundo estava em suspenso por um instante, e a noite, embalada em tambores e esperança, parecia inclinar-se para escutar.

Lanthys ergue os olhos para o céu escurecido, onde as brasas da fogueira dançavam ao sabor do vento. O som distante dos tambores misturava-se ao crepitar do fogo e à leve euforia da celebração, seu semblante era calmo, mas seus olhos continham o peso de incontáveis decisões. Ele responde, com voz firme, grave, carregada de propósito: “- Eu vou encontrar e confrontar a entidade!”

Um silêncio denso se formou ao redor do grupo… Os tambores ao fundo continuavam, abafados pela solenidade invisível que pairava entre os quatro, e Lanthys prosseguiu:

“- Não há mais espaço para dúvidas ou hesitação… Não se trata de vingança, muito menos uma missão a qual desejo cumprir, mas porque é o que precisa ser feito... porque enquanto ela existir, ninguém estará verdadeiramente livre. E eu não quero que mais ninguém sofra o que esse povo, vocês e tantos outros sofreram… É chegada a hora de quebrar o ciclo.”

Um novo e impactante silêncio… Korr’vhar o fitava, seu olho único, estreito e atento, Rebdush o observava com um misto de raiva contida e expectativa, ao passo que Zhaal’kor mantinha as asas recolhidas, como se pressentisse o peso das próximas palavras.

Lanthys então desviou o olhar para o vilarejo e sua estrutura, as pequenas luzes, os sorrisos, os cantos... tudo aquilo só existia porque a destruição fora impedida por pouco. Ele respirou fundo e começou: “- Há algo que vocês precisam saber... algo que nem eu compreendia até que visitei o vilarejo junto a vocês. Thuram’kar... não veio até aqui por fúria cega, ele não agia por vontade própria, mas porque foi ativado para me deter. Ele foi enviado pela entidade...”

Ele se levanta, dá um passo à frente, sua voz agora soava mais sombria: “- ...e sua rota era fixa, sempre em direção a este ponto, o coração do vilarejo. A razão? A energia que repousa sob esse solo. Há um núcleo geotérmico antigo ou um reator enterrado sob a terra, um ponto de extração energética, e Thuram’kar... dependia disso para se manter estável, mais duradouro, mais perigoso.”

Korr’vhar ergue as sobrancelhas, Zhaal’kor franze o cenho e Rebdush aperta os punhos. Lanthys prossegue, com pesar: “- O altar que o povo chama de Fonte Sagrada... é, na verdade, a tampa de contenção para essa energia. Quando o colosso o remove, e felizmente talvez só uma força monstruosa como a dele poderia tal feito… libera uma reação tóxica, um gás letal acumulado em sua câmara selada! Acreditavam que ele ‘roubava o coração do vilarejo’, mas na verdade, o vilarejo é apenas o local onde ele recupera a energia extra estocada para suas batalhas e assim continuar seu ciclo...”

Ele fecha os olhos por um instante, recordando os cálculos, os dados, as reações químicas analisadas em sua interface… “- Essa... foi a tragédia do passado. Não uma maldição, não há uma punição dos céus, apenas uma máquina obedecendo ordens antigas, repetindo um ciclo devastador porque alguém, em algum lugar, a considera útil.”

Os três permanecem em silêncio, mas Zhaal’kor, finalmente se manifesta: “- Então... era verdade. A lenda... Porém distorcida... como quase todas as verdades neste mundo.”

Lanthys apenas assente, com pesar: “- O povo sobreviveu ao que seria o segundo fim, mas milhares antes deles... não tiveram a mesma sorte. A sombra que nos espreita, essa entidade... preferiu destruir um povo inteiro a perder o controle sobre uma única peça em seu tabuleiro.”

Ele volta o olhar para os companheiros: “- É por isso que preciso detê-la, porque não foi um erro, foi uma escolha... Calculada, fria, repetível.” E por fim, quase como um sussurro, mas bem mais firme e imponente: “- Assim que o sol nascer, eu irei ao encalço dessa entidade, e porei um fim a este ciclo de egoísmo e destruição!”

O silêncio que se seguiu à revelação de Lanthys pesou como uma prece contida. Apenas as músicas e risos distantes do vilarejo preenchiam o ar, misturando-se à brisa suave da noite, os olhos dos três não desviavam do homem-máquina que, mais uma vez, escolhera realizar talvez o impossível. Foi então que Rebdush resolver dar sua opinião diante de tantas definições, quebrando o silêncio com sua voz grave e quase ríspida, encarando as chamas da fogueira como se visse nelas seus próprios conflitos.

“- Eu não tenho mais saco pra andar em grupo…” - disse, cerrando os punhos. “- Meu instinto há muito só me empurra pra quebrar tudo, esmagar o que me ferir, rasgar o mundo se precisar para ficar como quero que ele seja… E por muito tempo, foi isso que eu fiz. Sozinho.”

Ele desviou os olhos para Lanthys, a expressão endurecida suavizando apenas por um instante. “- Mas se na hora que confrontar aquele maldito, se a entidade em qualquer momento achar que te venceu… não vai precisar me chamar, pois eu estarei lá pra partir aquele maldito ao meio, junto de ti.” Rebdush virou-se em silêncio, os músculos tensos e a sombra de um sorriso torto escondido sob as presas cerradas.

Zhaal’kor ouviu, abaixou levemente as asas, sua postura era mais serena... Os olhos dourados, brilhando sob a luz da fogueira, pousaram em Lanthys com a intensidade de quem vê além da armadura física… “- Meu lugar há muito tem sido lá em cima, longe de tudo e de todos… No silêncio das alturas, onde os corações revelados em ganância e individualismo não me alcançam e onde a solidão me conforta... Foi assim que sobrevivi e foi assim que observei este mundo ruir.”

Ela ergueu os olhos brevemente ao céu e completou: “- Ainda há muito que preciso entender… Seguirei observando, pairando, entenderei se cogitar uma covardia de minha parte, mas não sinto assim, apenas… Ali, entre as correntes e os ventos, eu enxergo o que aqui embaixo não conseguem ver. E quando a batalha lhe encontrar... e meus olhos virem sua resistência à queda... então saberei que chegou a hora de descer novamente.”

Por fim, Korr’vhar se adiantou, seus passos firmes não carregavam mais a hesitação de outrora... Sentou-se ao lado de Lanthys uma vez mais, fitando o fogo com expressão resoluta, mas serena e por alguns segundos o silêncio foi tudo que restou, uma vez que todos esperavam a fala do destemido lobo, e ela veio, surpreendendo a todos: “- Estou cansado de andar sozinho.”

Lanthys, ao ouvir aquelas palavras, não esboçou surpresa visível, mas, por um breve instante, seu olhar suavizou, pois ele via em Korr’vhar, a saudosa expressão e comportamento de seu irmão robótico Argos, e aquilo lhe confortava muito!

Rebdush ergue uma sobrancelha, descruza os braços e solta uma risada rouca, quase zombeteira, mas sem malícia, acomodando-se deixando clara sua curiosidade em que palavras ainda estavam por vir, ao passo que Zhaal’kor, ainda pousada próxima, não desviava os olhos flamejantes do lobo, inclinando levemente a cabeça, como quem observava algo raro e valioso, e sua voz ecoa calma, sem ironia: “– Isso é satisfatório de se ouvir, meu velho amigo.”

As palavras de Korr’vhar que seguiram, foram simples, mas carregadas de emoção, embora não tivesse preparado que fosse assim. “- Por tempo demais, caminhei como fera ferida... errante... acreditando que não havia mais rumo possível para mim, busquei o fim me reduzindo a algo que pudesse ser destruído até por um bando de arruaceiros… Mas encontrei uma nova estrada... e talvez um propósito.”

Ele virou o rosto, seu olho único brilhando de azul pulsante. “- Se você permitir, será uma honra trilhar esse caminho inóspito com você! Como bem disse, não é apenas por vingança... mas porque acredito que, pela primeira vez, posso construir algo que valerá a pena proteger.”

Lanthys então sorri levemente, faz um leve gesto com a cabeça, firme e acolhedor, repleto de significado: “- Eu compreendi… Será talvez uma das maiores honras dessa aventura Korr’vhar!”

E ali, diante da fogueira, os quatro se tornavam mais que lendas, tornavam-se eco, semente, promessa. Cada um à sua maneira, cada um com sua dor, com sua escolha... Mas todos transformados pela centelha que só um verdadeiro portador da esperança seria capaz de acender.

A noite caiu tranquila sobre o vilarejo, o calor abrasador do deserto havia enfim se dissipado, dando lugar a um frescor ameno, onde a areia já não queimava os pés descalços e o vento soprava com um sussurro leve, como se a própria terra respirasse aliviada. A escuridão que outrora trouxera medo, agora era acolhedora, iluminada apenas pela dança laranja da grande fogueira central, seu crepitar constante misturava-se aos sons suaves de instrumentos deixados ao redor, tocados por mãos há poucas horas vibrantes, agora adormecidas.

Zhaal’kor, de asas recolhidas, adormeceu no alto de uma viga de pedra próxima, com a serenidade de quem, pela primeira vez em eras, baixava a guarda. Seus olhos dourados se fecharam sem vigilância… Korr’vhar, recostado também sobre uma pedra próxima a Lanthys, não mais mostrava as marcas da dor de outrora, e seu peito subia e descia em um ritmo calmo, dormia profundamente, como um guerreiro exausto que, pela primeira vez, sentia-se seguro ao lado de seus semelhantes.

Rebdush, por outro lado, não se permitia o mesmo alívio. A cada cochilo breve, despertava com o ranger dos próprios dentes, os olhos varrendo as sombras como se inimigos ainda espreitassem. Seu corpo não tremia de frio, mas de raiva mal contida, a fúria não lhe permitia repouso completo, e mesmo quando os olhos se fechavam, os punhos continuavam cerrados. Ainda assim, em respeito aos demais, mantinha-se em silêncio, apenas respirando pesado entre uma vigília e outra, como se lutasse contra seus próprios demônios.

Lanthys permaneceu imóvel diante da fogueira. O brilho sutil de seus braços metálicos pulsava em ondas lentas, indicando que seus sistemas seguiam em processo de restauração, não precisava dormir, mas pensava… observava. Por dentro, milhares de dados se organizavam, mas o que ocupava sua consciência era algo que nenhuma IA poderia medir: o significado da confiança que havia recebido.

De tempos em tempos, aldeões ainda acordados surgiam em silêncio. Alguns traziam pequenas flores selvagens, colhidas do deserto em flor, outros deixavam ramos, pedras coloridas, colares de contas simples ou amuletos rústicos. Lanthys retribuía com um leve gesto de cabeça, seus olhos suaves, mas intensos, dizendo mais do que qualquer palavra. Não recusava… não os encorajava a mais. Apenas respeitava.

A noite passou como um suspiro. Os sons distantes de risos infantis ainda ecoavam na lembrança daqueles que sonhavam. Havia paz depois de horas de puro terror e sofrimento, a aldeia dormia sem medo de desaparecer com o amanhecer.

E então, antes que a aurora tingisse os céus, Lanthys se ergueu. Silencioso como uma sombra luminosa, deu as costas à fogueira ainda viva e caminhou entre as casas humildes. Nenhum aldeão o viu partir, no entanto Korr’vhar, já desperto, o seguiu com passos decididos, sem uma única palavra, apenas ombro a ombro com aquele em quem agora confiava sua segunda chance.

Rebdush já não estava ali, tampouco Zhaal’kor, ambos haviam partido durante a noite, discretos, sem despedidas, como era de se esperar, cada um seguindo o rumo traçado por suas convicções.

E quando os primeiros raios de sol tocaram as dunas distantes e os aldeões começaram a despertar, encontraram o altar de Vhalturian repleto. Todas as oferendas que haviam deixado aos pés de Lanthys estavam ali, cuidadosa e respeitosamente posicionadas, como se ele tivesse retornado ao sagrado, ou à sua morada divina. Para os mais devotos, não havia dúvida: o milagre caminhara entre eles… e agora voltara para o céu.

Continua...

Galeria de artes do episódio:

O vilarejo ancestral, chamado por Zhaal'kor de Dharavorn:

O povo chamado de Vaarikhen, moradores da ancestral Dharavorn:

O altar de Vhalturian, devidamente com as oferendas que recebeu:

Thuram'kar, a montanha viva, agora em sua nova forma:

Sahr Rebdush (Tharnak), o demônio galopante:

Zhaal'kor (Ehllënia), a águia majestosa:

Korr'vhar (Caolho), o protegido do esperançoso Dummok:

Lanthys, o enviado dos Observadores ao planeta Aurithar:

4 comentários:

  1. Eis um capítulo mais calmo e tranquil odessa saga, algo necessário após o combate intenso do capítulo anterior e, puxa, como ficou bacana.
    Ajudou a desenvolver mais os três novos companheiros do Lanthalder, mesmo que apenas um tenha realmente decidido a caminhar ao lado do homem robô (obs. segundos antes de ler eu já imaginava que você traçaria um paralelo com o Argos), mostrando que os seres não mudam em instantes da noite para o dia, ainda mais alguns que tiveram vidas tão sofridas,, o que foi um baita acerto pois, escritores menos capacitados já teriam feito os quatro se abraçarem como velhos amigos, prontos para enfrentar o mundo lado a lado, o que você sabiamente não fez, deixando os personagens mais tridimensionais.
    Foi realmente um respiro após prender a respiração com o capítulo anterior.
    Parabéns cara.

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    1. Gratidão pela leitura meu amigo, realmente eram necessários ajustes para partir pra próxima fase (talvez a final) pois os três não são exatamente seguidores de Lanthys como em Nipo Ranger, mas seres que muito mais que o próprio Lanthys, tem experiências, vivências, dores e sentimentos muito além do que ele pode compreender! Dito isso, era necessário que não fossem se unir já a ele, e seguir como bem dissestes, como bons amigos, porém, algo ficou, a ideia de que, "se precisar, estarei aqui", acho que isso é mais compatível! Porém, não achei legal que todos fizessem isso, e Korr'vhar foi o único a ser "salvo" por Lanthys, achei que dado a questão do cão, amizade com o homem, Lanthys e Argos e, ter um que ia fazer diferente, achei que cabia, fico feliz que tenha curtido! Muito legal também, que tenhas feito o paralelo entre Lanthys e Argos, isso é importante pra entender o que mais virá na trama! Gratidão pela leitura e apoio de sempre meu amigo, grande abraço!! \0/

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  2. Meu amigo...


    Como tu consegues?
    Que dom é esse que trazes, ao emocionar com palavras poderosas e reconfortantes a quem tem a honra de ler suas histórias?

    Onde buscas inspiração para trazer conforto às nossas almas sofridas com esse mundo injusto e cruel que vivemos?

    Faltam-me palavras adequadas para expressar a preciosidade desse texto tão profundo e marcante.

    De fato, sendo um Homem-Máquina, Lanthys/Lantahalder conseguiu um milagre...

    O milagre de resistir...
    O milagre de continuar a acreditar, mesmo com tudo contra.
    O milagre de restaurar a chama da resistência nos corações de heróis feridos, que tanto se sacrificaram por um mundo que eles, julgaram nãovaler mais a pena.

    Véio...


    Impactado!!

    Tu és phoda...
    Tu tira leite de pedra...

    Obra-prima!!!

    Sem mais...

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    1. Meu amigo Jirayrider, mais uma vez quem fica sem palavras sou eu, gratidão sem fim pelo apoio, incentivo, acompanhamento e palavras tão inspiradoras! Essa saga tá me permitindo fazer algo que sempre desejei pra nossa mundo, ter pessoas, mesmo que sejam poucas, que tem um real interesse no certo, no justo, no empático, e Lanthalder inspira isso! Não estou desfazendo de Seijuro ou de Grund, cada qual à sua maneira e seu mundo tem seus estilos, mas Lanthalder, cara, ele é o ser humano perfeito, o Capitão América tupiniquim, o cara que faz o certo, o empático, e se importa com todos, aliados ou não... Sem dúvida alguma a inspiração vem de dois pontos, um eu vou revelar ao final da saga, senão estrago o final dela, o segundo, vem dessa situação que nosso mundo vive, onde fazer o certo é ser besta, e fazer o errado, é descolado e astuto! Quero mostrar que o mundo que desejo vai muito além de justiça, mas sim, de empatia e dedicação para com o próximo e felizmente essa saga tá proporcionando isso! Muito obrigado meu velho, gratidão pela parceria de sempre, grande abraço! \0/

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