sábado, 9 de agosto de 2025

Perturbador - Caso 11 - Cuida dela... Que ela cuida de ti!

O minuano soprava frio naquele amanhecer nos campos de Bagé, pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, embora que na noite anterior estivesse completamente o oposto. Depois de horas de busca, Gabriel — jovem de 23 anos, recém-chegado de Santa Maria, onde cursava veterinária — seguia a cavalo junto aos demais peões e seu avô, seu Nicanor, que ainda mantinha a propriedade aos 83 anos de idade. Empunhava firme seu facão, pronto para agir se fosse preciso.

O facão de Gabriel não era apenas uma ferramenta de campo, era herança de família. Seu avô, velho tropeiro que cruzara o pampa de ponta a ponta, o entregou no dia em que ele completou dezoito anos, dizendo:

Esta faca de aço já bebeu chuva e sol mais do que muito vivente que se acha guapo. Agora é teu. Cuida dele… e ele cuida de ti.

A lâmina de aço forjado artesanalmente carregava marcas finas de uso, mas nenhuma ferrugem ousara tocá-la. Perto da base, junto ao guarda-mão, havia um pequeno símbolo gravado — um losango com três linhas horizontais — o “sinal da família”, segundo seu Nicanor.

O cabo era a parte mais singular: feito de osso polido de guampa de boi, liso ao toque, mas com entalhes profundos que formavam o nome GABRIEL em letras bem trabalhadas. Nas extremidades, pequenos círculos de prata eram incrustados, refletindo discretamente sob a luz do fogo de chão. Por ser osso e metal, resistiria onde couro e madeira perecessem.

Naquela manhã, todos procuravam um peão desaparecido durante uma cavalgada noturna. Curiosamente, Gabriel não conseguia se lembrar de quem exatamente buscavam. O nome, o rosto… nada lhe vinha à mente. Não quis perguntar para não parecer distraído, mas algo nessa amnésia o incomodava.

O silêncio no grupo também chamava atenção. Seu Nicanor, especialmente, estava inquieto, olhando ao redor com desconfiança e segurando as rédeas como se esperasse um ataque.

Depois de horas, encontraram algo estranho: dois sulcos paralelos no chão aberto, como se algo enorme tivesse se arrastado por ali. Nenhum dos homens soube dizer o que era, apenas seu Nicanor empalideceu, levou a mão à boca e, sem dizer uma palavra, esporeou o cavalo num disparo desesperado, seguindo o rastro.

Algumas centenas de metros adiante, parou bruscamente, apeou e caiu de joelhos, chorando como quem vê o fim do mundo, os outros o alcançaram, mas ninguém se aproximou, apenas Gabriel correu até ele. Ao tocar o ombro do avô, uma vertigem brutal tomou seu corpo, o chão pareceu desaparecer, e ele desabou inconsciente. Foi então que o pesadelo começou.

Gabriel se viu de volta aos campos do avô. Era noite, a noite passada para ser mais exato, montado num cavalo confiável, cavalgava sem pressa sob um céu límpido, a lua fina mal iluminando o horizonte. O silêncio era tão profundo que ele ouvia o som das próprias esporas, sentia-se livre e protegido pelo facão à cintura.

Foi quando percebeu uma luz distante, serpenteando pelo campo. No início, achou que fosse fogo em algum potreiro, mas o brilho mudava de cor, do laranja ao azul, e se aproximava, ondulando como se tivesse vida. O cavalo ficou inquieto, a respiração do animal acelerou, e então, sem aviso, empinou e disparou em fuga, dando uma grande queda em Gabriel, e o deixando sozinho em meio ao campo aberto.

Do mato alto veio um som estranho, acompanhado de um estalar seco, como madeira quebrando. A vegetação se abriu, uma forma colossal emergiu: alongada, mais grossa que qualquer tronco de angico, coberta de escamas que refletiam luz como metal incandescente, mas que não queimavam o capim sob si. Um cheiro pesado de terra queimada e ferro fundido tomou o ar.

A criatura parou diante dele, milhares de olhos a cobriam, cada um brilhando com intensidade e cor diferentes, piscando num ritmo hipnótico. Gabriel, trêmulo, puxou o facão com as duas mãos, lembrando-se das palavras do avô, mas quando os olhos se fixaram nele, o pavor foi maior do que a coragem, seu corpo inteiro gelou, o peito arfou, e num ato desesperado, largou o facão das mãos para empreender fuga, caindo o presente do avô no capim.

O ar ficou denso. Nenhum vento. Nenhum som. Apenas a pulsação luminosa dos olhos e aquela vibração sonora grave, vindo de dentro do monstro, não um rugido, mas algo mais antigo, como uma ameaça que existia antes da própria linguagem.

Então, num único movimento, a criatura avançou, a luz o engoliu, Gabriel tentou gritar, mas sua voz foi arrancada dele e tudo virou escuridão. Quando abriu os olhos, estava de volta ao amanhecer, mas não como antes. Estava de pé, olhando para si mesmo, seu avô chorava sobre um corpo carbonizado, vestido exatamente como ele. A alguns metros, no pasto rasteiro, o facão intacto brilhava, com o cabo de osso marcado por seu nome.

Gabriel gritou, olhou as mãos e tocou a cintura em busca do facão, não o encontrou, e então correu! Tentou apanhar o facão em meio ao pasto, não conseguiu, desesperado se dirigiu ao avô, tentou tocá-lo, mas nem ele nem ninguém o ouvia ou via. Os anéis de prata e o losango no cabo refletiam a luz fraca da manhã, confirmando o que ele já sabia, mas não queria aceitar.

Antes que a escuridão o tomasse novamente, ouviu seu Nicanor interromper o choro, encarar o horizonte com um ódio silencioso e a murmurar quase para si mesmo: “Maldito… Boitatá.


FIM

4 comentários:

  1. Grande Lanthys!

    Em poucas palavras entregasse tudo.

    Era nítido que Gabriel havia morrido, vítima de um ataque brutal do Boitatá, mas sim alma se recusava a aceitar a sua nova realidade de desencarnado.

    A forma como conduzisse a narrativa ficou muito boa e a leitura me prendeu, mesmo já sabendo o desfecho.

    Mandou muito bem!

    Arrebentou!

    Parabéns!

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    1. Mais um episódio brilhantemente elaborado, com uma execução impecável e um ritmo perfeitamente sincronizado! É fascinante ver como as peças vão se encaixando, como cada personagem e cada ideia se unem de forma orgânica, criando algo cada vez mais envolvente. O plano de Kiroz foi um exemplo disso: conseguir trazer Wandar para o seu lado, mesmo que a vantagem fosse claramente dele, mostrou esperteza — afinal, ambos tinham um objetivo em comum, causar estragos nos Flashman, e essa era a oportunidade perfeita para isso!

      O mais incrível é ver como os vilões também sabem se articular, encontrando maneiras de provocar o caos nos momentos mais críticos para os heróis. A trama brilhou com o sequestro, a chantagem, a angústia de Ryu e a determinação dos demais em agir, partindo para o campo de batalha. A estratégia foi inteligente, mas, felizmente para todos nós, vilões raramente conseguem manter a união — se conseguissem, talvez os heróis não tivessem chance alguma...

      Kiroz mostrou mais uma vez sua verdadeira essência, com um linguajar impecável que só fortalece sua presença. Wandar, por sua vez, voltou a ser o Wandalo que conhecemos, carregando o peso da própria aparência, enquanto La Deus retornou com força total, ameaçando geral e pegando todos de surpresa!

      Meus amigos, vocês estão mandando bem demais. Sinceramente, está ficando cada vez melhor. Meus parabéns mais sinceros — excelente trabalho! \0/

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  2. E aí está um conto extremamente bem escrito, mostrando uma narrativa mais enxuta no tamanho, mas nem por isso menor em qualidade de seus outros títulos, mais extensos quanto à escrita.
    E eu simplesmente adorei o fato de você contar uma história passada no Brasil e em uma região bem conhecida por você, o que aumentou a veracidade dos acontecimentos e com a voz dos pesonagens, sim, pois usar falas, gírias e maneirismos do povo gaúcho torna a narrativa ainda mais real, mais palpável, pois um leitor atento vai perceber que, muito provavelmente, os moradores da região falam exatamente assim. Ficou excelente.
    Assim como também ficou excelente toda a construção da história do Gabriel e Nicanor, bem como o uso do Boitatá, mostrando como nosso folclore, se bem escrito, pode render ótimas histórias.
    E esse final me deixou com um gostinho de quero mais, mesmo sabendo que, provavelmente, não terá.
    Parabéns amigão!

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    1. Gratidão pelas palavras meu amigo, fico muito feliz em retornar com esse título e ter tão boa recepção por parte de vocês! É, Perturbador é um título que quero manter nesse formato mais enxuto, quero que ele seja um escape para treino, de textos menores e ainda assim entregando o necessário, é um exercício bom e necessário! E como a ideia é exercitar, sempre se exercita algo que se tem dificuldade ou que se faz pouco, e escrever sobre o o Brasil é algo bem raro, então, achei interessante pegar um terror daqui do sul e deixar ele mais, aterrorizante, com um pouco mais de violência e gore! E sem dúvida, a facilidade com o linguajar, maneirismo e ambiente daqui, facilita e muito pra deixar o texto mais crível e mais ambientando, foi um exercício muito bom, confesso! Quanto ao final, quem sabe uma vingança contra o Boitatá logo mais? Não é uma ideia a se dispensar, eu confesso... Quem sabe? Valeu pela leitura, apoio e incentivo de sempre meu amigo, bom poder contar com essa parceria toda vez que posto algo novo, um grande abraço e obrigado por tudo! \0/

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Perturbador - Caso 11 - Cuida dela... Que ela cuida de ti!

O minuano soprava frio naquele amanhecer nos campos de Bagé, pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, embora que na noite anterior e...