sábado, 22 de novembro de 2025

Ekzyliön - Caso 2 - A vingança incontrolável!


O sol da manhã filtrava-se pelas frestas das nuvens escuras naquele dia que parecia, seria de predominância nublada, tingindo o mar levemente de um dourado metálico... A orla, naquele horário era menos barulhenta, e naquele momento parecia mais um quadro empoeirado de lembranças, silencioso ao extremo, com o som das ondas sendo o único que ousava preencher aquele vazio.

No alto de Sumaré, a vida seguia normal e era possível observar de onde estava agora, bem na avenida mais próxima da praia ao pé do morro, uma pequena cafeteria que resistia ao tempo, “The Harbor Coffee”, dizia a placa com letras brancas, e um aroma de café forte que se misturava ao sal do ar e ao leve odor de ferrugem vindo der algumas estruturas corroídas próximas à praia.

O mundo não havia acabado, apenas digamos, mudado de lugar. O cataclismo não destruiu o planeta, apenas o redesenhou, o norte, outrora centro das potências e impérios, havia se tornado uma cicatriz congelada e radioativa, um cemitério de cidades que um dia comandaram o destino de todos. Já o sul, antes chamado de “emergente”, emergira de fato, não por escolha, mas por sobrevivência e necessidade, talvez até caridade para com quem perdeu tudo.

No Brasil, e em boa parte do hemisfério sul, a vida ainda pulsava, embora em ritmo diferente, a eletricidade era racionada; os luxos, lembranças quase distantes. As noites voltaram a ser escuras e silenciosas, e as pessoas aprenderam novamente o valor da chama de uma lamparina e da conversa ao pé da porta.

Ainda assim, as ruas estavam vivas. Povos de todas as origens se misturavam nas vielas e mercados improvisados, trocando sotaques, saberes e esperanças. O que antes dividia, cor, credo, bandeira, agora servia de cimento para reconstruir o que restou da civilização. Ali, no coração do novo sul global, o mundo tentava renascer.

E, sentado naquela cafeteria à beira-mar, o jovem parecia não focar em quanto o mundo já havia mudado, mas sim nas mudanças que ainda estavam acontecendo… Observando o vapor subir de sua xícara, como se o líquido negro tentasse lhe contar um segredo, o acompanhava igualmente ao lado, uma bandeja com três coxinhas ainda fumegantes! O sabor era brasileiro, mas o ambiente parecia saído de um filme hollywoodiano: balcão de madeira escura, letreiro em néon tremeluzindo, e um rádio antigo tocando uma versão arranhada de Fly Me to the Moon.

No canto da mesa, um notebook aberto exibia uma planilha extensa. Linhas e colunas organizavam nomes, datas e pequenas anotações, ao lado, ícones coloridos das redes sociais pareciam vigiar cada entrada, como olhos digitais atentos a todos os movimentos. Ele passava os olhos pelas informações com o costume de quem faz aquilo todos os dias, sem pressa e sem um interesse mais intensivo, apenas porque parecia sua rotina.

“- Perfeito… Mais um cliente conquistado, uma excelente indicação da senhora Astrid, e uma vez que já fiz o contato inicial, agora posso continuar como os demais, via remoto! Bem-vindo à minha lista de clientes, senhor Erik Moretti, morador de Sumaré no RJ!”

Entre um gole e outro, como se mudasse o foco de sua atenção, clicou em uma aba nova, na barra de pesquisa, digitou: “casos inexplicáveis sem solução” O navegador carregou as informações e em poucos segundos, a tela se encheu de manchetes, relatos e imagens, algumas perturbadoras… Notícias antigas, teorias esquecidas, investigações abandonadas, o reflexo da luz na tela fazia seus olhos parecerem mais ávidos a cada nova informação ou detalhe!

Ele deu uma mordida no salgado, limpou a ponta dos dedos no guardanapo feito de papel bem menos macio do que antigamente existira, mas ainda assim funcional para a função necessária, e ficou ali, imóvel, encarando o brilho azul da tela como se procurasse algo que ainda não tinha certeza do que era.

Do lado de fora, o mar rugia baixo, e por um instante, um trovão distante fez tremer os vidros do café. O mundo parecia em pausa, mas era como se ele a todo tempo lembrasse, que não era mais o mundo de antigamente, e tudo poderia se tornar real naquela nova era, por mais absurdo que parecesse!

O vapor do café ainda subia preguiçoso da xícara quando um som seco quebrou a harmonia do lugar. Um “Tum!” abafado contra o vidro da porta de entrada fez o jovem levantar os olhos, surpreso.

Do outro lado, uma moça ruiva esfregava o nariz com um meio sorriso embaraçado, como quem se desculpa com o próprio mundo. Tinha uns vinte anos, talvez mais, ou menos, era impossível precisar. Vestia roupas simples, leves, de quem não tem tempo a perder com aparência, o cabelo, meio preso, meio rebelde, refletia os tons alaranjados da manhã que entrava pelas janelas.

Entrou sem cerimônia, com o celular encostado ao ouvido e uma bolsa pendurada no ombro, equilibrando um notebook debaixo do braço, falava rápido, anotava algo mentalmente, interrompeu a conversa apenas o suficiente para dizer ao atendente: “ - O mesmo de sempre, Rapha. Faz favor!

O atendente apenas assentiu, já habituado àquela rotina, ela seguiu direto para o fundo do salão e acomodou-se na poltrona em “L”, virada parcialmente para a janela. Em segundos, o notebook já estava aberto, o fone conectado, e seus dedos dançavam sobre o teclado num ritmo ansioso, parecia estar no meio de algo grande, ou urgente.

O rapaz a observou por alguns instantes, quase sem perceber que fazia isso, o reflexo do mar e das luzes suaves da cafeteria criavam ao redor dela uma moldura natural, como se o mundo inteiro tivesse decidido realçar sua presença. Havia algo na forma como ela se movia, um tipo de familiaridade estranha, algo que ele não sabia nomear. Só desviou o olhar quando o vapor do café lhe queimou os lábios e o lembrou de onde estava.

O som suave das conversas misturava-se ao chiado constante da máquina de café, o jovem mantinha o olhar para a tela do notebook, os dedos digitando com ritmo calmo, notificações pipocavam no canto: mensagens rápidas, quase banais: “Relatório pronto”, “Revisar dados até o meio-dia”, “Cliente novo solicitando orçamento”...

A rotina parecia intacta, até que uma nova janela surgiu sobre as demais, pequena, discreta, mas carregando algo que o fez prender a respiração. O reflexo da tela brilhou em seus olhos, e o coração acelerou, por um instante, o burburinho da cafeteria sumiu. O mundo inteiro se reduziu àquele retângulo luminoso diante dele, mesmo o som distante das ondas batendo na areia parecia se apagar, engolido por algo maior, algo que só a ele parecia tão importante.

Então, com um movimento brusco, fechou o notebook, as cadeiras ao redor tremeram levemente com o impacto. Colocou algumas notas dobradas sob a bandeja, apanhou o casaco, agradeceu ao atendente com um gesto de saudação e saiu quase correndo, sem olhar para trás! O sininho da porta, item muito comum naquele tipo de país em seus estabelecimentos, tilintou nervoso, acompanhando a urgência em seus passos.

Foi só nesse momento que ela ergueu os olhos. A ruiva, até então mergulhada em seu trabalho, percebeu o vulto atravessando a rua sob o sol pálido da manhã, o reflexo dele na vidraça ainda tremia quando ela franziu o cenho, tentando acompanhar com o olhar. Havia algo familiar naquele jeito apressado, naquela silhueta, um eco distante de lembrança, quase como uma nota dissonante em uma melodia esquecida.

Levou a mão ao queixo então, pensativa… “ - Eu conheço aquele cara? De onde? ” Murmurou, mais para si do que para o mundo. O atendente, distraído com o vapor do leite, nem ouviu, o som do mar voltou, as conversas retomaram o fluxo, e a vida seguiu dentro da cafeteria. Mas no olhar dela, agora, havia uma centelha de dúvida, e de que algo estava lhe escapando ao raciocínio.

O vento cortava o rosto do jovem enquanto ele descia apressado pela rua estreita, os tênis salpicando poças d’água deixadas pelo sereno da manhã. O cheiro de maresia misturava-se ao de ferrugem das grades e ao asfalto úmido que fumegava sob o sol nascente, em uma das mãos, o celular tremia, os dedos deslizavam pela tela, acionando o aplicativo de transporte.

- Está longe daqui…” - murmurou entre respirações ofegantes. “ - Devemos levar quase trinta minutos pra chegar lá… Isso pode ser fatal pra muitos lá… Droga! Eu preciso descobrir como prever isso antes, não pode seguir dessa maneira!

Seu tom era de frustração e desespero, um nó apertando o peito, como se o tempo inteiro conspirasse contra ele. E então, a voz veio, não vinda de fora, mas de dentro, e, ainda assim, soava tão real quanto o ruído dos carros passando. A vibração dela parecia tocar o ar, como um trovão distante.

- Tua missão é ser justo”, disse a voz, firme e serena, com a entonação antiga de quem fala em séculos, não em dias. “- Isso significa fazer o teu melhor. Jamais poderás salvar a todos, e isso é o peso do justo. Aprende, portanto, a distinguir o que é impossível daquilo que é necessário. Faz o melhor, e isso será o suficiente… O tempo e a dedicação são os melhores mestres, confie neles.

O rapaz cerrou o punho, os olhos fixos no horizonte, o suor frio escorria pela têmpora, o coração batendo como tambores de guerra dentro do peito. “ - Toda vida importa…”, respondeu, entre dentes. “ - Eu não posso aceitar somente o que é possível. Tenho que impedir o que é inevitável! Sempre!

A voz permaneceu em silêncio, como quem observa e não julga, um som metálico vibrou, o alerta do aplicativo veio em seguida: “Seu motorista chegou.” O carro deslizou até a calçada, o motor baixo como um ronronar contido. O jovem correu até ele, abriu a porta e entrou, ainda respirando fundo, o cheiro de estofado misturando-se ao da fumaça distante.

- Espero… que ainda dê tempo. ” - Murmurou, antes de o veículo partir, sumindo pelas avenidas emaranhadas da nova cidade. Lá fora, o céu começava a clarear, as nuvens alaranjadas refletiam nos espelhos d’água, como se o próprio firmamento estivesse prestes a incendiar.

O “The Harbor Coffee”, rua principal da praia aos pés do Morro do Sumaré, o tilintar do copo quando o atendente pousou sua xícara fez o pequeno relógio da parede marcar mais quinze minutos. A ruiva, com o olhar perdido entre as linhas do texto que digitava, ergueu o rosto num gesto automático, o vapor do café evaporou-se em fio prateado e a luz quente da janela desenhou sombras suaves no teclado do notebook.

Então o celular vibrou, uma vibração curta, quase imperceptível, mas suficiente para quebrar a concentração. Ela olhou; na tela, um nome abreviado e a bolha verde do WhatsApp, ela abriu a mensagem: [INFO-FOX]: “ Volkov & Irmãos — relatos estranhos. Barulho, luzes, gritos. Polícia no perímetro. Ainda sem confirmação. Se curtir essas loucuras, é pra ti. Tô a 5 minutos. Te envio foto em seguida.

Ela arqueou uma sobrancelha e não conteve um sorriso irônico. Apertou os lábios, como quem contém um comentário que poderia ser rude demais para o atendente que servia mais um cliente. Respondeu com dedos rápidos, o som das teclas abafado pelo murmúrio da cafeteria: “ - Você vive pra me atrasar, sabe disso? Tô a meia hora daqui, seu inútil. Da próxima, manda primeiro e depois se gaba.

A resposta dele veio em seguida, rápida e sem cerimônia: [INFO-FOX]: “ Relax, Ru. Era urgente. Vem logo que tá pegando fogo, literalmente, dizem os vizinhos. ” Ela deu uma risada curta, nervosa, fechou o notebook com o clique seco do teclado; o som ecoou na mesa como um sinal para si mesma. A bolsa estava ao lado, o fone ainda enroscado no braço; apanhou o celular, a carteira, e a caneta que tinha usado para rabiscar notas rápidas.

A xícara ainda fumegava, ela inclinou, sorveu o resto do café, sentiu o amargor revigorar-lhe a garganta, e deixou uma nota dobrada embaixo da bandeja. O atendente acenou, distraído, e ela chamou, sem olhar para trás: “ - Guarda meu lugar, Rapha, volto logo… Eu acho!

As palavras saíram meio em tom de comando, meio em ironia completa, ela ajeitou a bolsa, enfiou o notebook e a caderneta, pegou os óculos e, de forma desajeitada, mas prática, passou o braço pela alça; um fio escapou, um estojo caiu do lado, ela apanhou com um sopro ofegante. Sentiu nos dedos a textura do couro gasto, o zíper quente de tanto uso.

Do lado de fora, o ar estava mais frio que alguns minutos antes; o cheiro do mar entrou com força, salgado, cortando a doçura do café, o ruído das ondas misturou-se ao motor distante de motos e carros. Ela fez um último ajuste na mochila, respirou fundo, o gosto metálico da ansiedade na boca, e partiu.

Enquanto caminhava, enviou outra mensagem curta ao informante, desta vez num tom que misturava pressa e ironia: “ - Manda tudo. Fotos, vídeo, qualquer coisa. Tô indo. Se tu estiver longe, fica na minha cola. E por favor, tenta não morrer antes que eu chegue. ” A resposta demorou apenas alguns segundos… [INFO-FOX]: “ Tô a caminho. Te vejo lá.

Endereço da fábrica Volkov & Irmãos, o helicóptero girava em círculos sobre o céu cor de chumbo, o som das hélices cortando o ar como lâminas, lá embaixo, a antiga fábrica de bebidas “Volkov & Irmãos”, um prédio de concreto esfarelado e vidros quebrados, tremia a cada estampido vindo de dentro.

- Nenhuma resposta até agora! ” Repetiu o comandante no rádio, o rosto suado refletindo as luzes vermelhas do painel. ” - Todas as entradas seladas. É como se tivessem soldado tudo por dentro!

O cheiro de álcool e ferro queimado se espalhava pelo entorno, misturado à maresia que subia dos canais da Baixada, policiais militares cercavam o perímetro, escudos erguidos, fuzis em posição, enquanto os drones da imprensa zuniam como mosquitos em volta da cena.

Das janelas trincadas da fábrica, luzes vacilantes piscavam e morriam, acompanhadas de ruídos metálicos, como se algo fosse arrastado por dentro, o ar estava pesado, denso, vibrando com uma energia que ninguém sabia explicar. “ - Tem alguém gritando lá dentro! ”, berrou um dos oficiais, apontando para o segundo andar.

De fato, um som humano se misturava aos estrondos, rouco, prolongado, como se um homem estivesse sendo engolido pela própria dor. O chão tremia levemente sob os pés dos agentes, um cheiro forte de ozônio, aquele aroma metálico que antecede uma tempestade, tomou o ar. “ - Recuem! Recuem todos! ”, ordenou o comandante, percebendo que o portão principal agora ardia em brasas incandescentes, como se algo estivesse queimando o ferro de dentro pra fora.

No alto, o helicóptero subiu mais, as câmeras captando a cena impossível: as telhas do galpão se erguendo como se o próprio prédio respirasse, exalando uma fumaça vermelha, densa e pulsante. Os repórteres começaram a transmitir ao vivo, os vizinhos gritavam nas lajes, filmando com celulares, e os policiais, acostumados à violência urbana, sentiam o primeiro calafrio que não vinha do medo humano, mas do instinto. Porque o que rugia lá dentro... não poderia ser um homem.

O som do mundo lá fora era abafado pelo uivo metálico que tomava o interior da fábrica. Tudo ali vibrava, as esteiras, os dutos, os galões tombados, até o chão, que pulsava num ritmo estranho, quase orgânico. A cada lampejo das lâmpadas trêmulas, via-se o corpo do jovem, de pé entre os destroços, arfando, as mãos cobertas de sangue e fuligem. Seus olhos, outrora castanhos, ardiam agora num vermelho febril, um brilho que definitivamente não lhe pertencia.

- Mataram meu irmão... ” murmurou, a voz rouca, trêmula, o eco devolveu a frase distorcida, como se o próprio lugar zombasse de sua dor. Então o murmúrio virou gargalhada, uma gargalhada gutural, reverberando de dentro de sua garganta. “ - Vocês o mataram, mas nós o vingaremos.. ” O som não era dele, era sem dúvida algo com ele, algo dentro dele.

Garrafa após garrafa começou a estourar sozinha nas prateleiras, p ar cheirava a álcool e pólvora, e a névoa que subia das frestas do chão parecia vibrar como fumaça viva. Os papéis que antes estavam sobre a mesa giraram no ar, queimando em espirais alaranjadas.

Os seguranças que haviam tentado se esconder atrás da porta de metal olhavam, apavorados, pelo visor estreito, e o que viram fez um deles cair de joelhos: o rapaz agora estava coberto de uma película escura, como se sua pele estivesse rachando e exalando sombras líquidas, as tatuagens do braço se moveram, se contorcendo, formando olhos e bocas que gritavam em silêncio. “ - Sangue por sangue... ” sussurrou a criatura, usando a voz do hospedeiro.

Ele ergueu uma das mãos, dedos alongados, deformados, e as ferramentas começaram a vibrar sobre as bancadas. Martelos, chaves, pedaços de ferro... todos subiram no ar, girando como se atraídos por um campo invisível, o som das peças batendo umas nas outras era ensurdecedor, como sinos de guerra.

Um segurança gritou, e nesse exato instante, algo o puxou para dentro do galpão, o portão metálico se fechou sozinho, o estrondo ecoando como trovão. Lá fora, os policiais ouviram o grito, lá dentro, o som se misturou ao rugido animalesco, um bramido de puro deleite, como se o próprio inferno se alimentasse do medo ali abundante.

Chamas negras começaram a surgir nos cantos das paredes, não consumindo, mas marcando, símbolos antigos, desenhados em brasa viva. A sombra do jovem se distorcia agora, tornando-se maior, com chifres e garras projetadas na parede. E enquanto os gritos cessavam um a um, ele avançava pelos corredores como um predador, seguindo o cheiro da culpa e da carne viva.

Na penumbra do escritório do segundo andar, o dono da fábrica tremia, trancado com dois seguranças, os rostos brancos como giz. O rádio chiava com vozes desesperadas, “Não abram a porta, ele não é humano!” E então... silêncio... apenas o som distante de passos lentos no corredor, seguidos de uma respiração grave, animalesca, que parecia vir de todas as direções. 

O dono da fábrica encostou-se à parede, o coração martelando, os olhos presos na maçaneta que começava a girar sozinha. “ - Teu veredicto chegou... E ele é exemplar... ” A voz, múltipla e profunda, veio de trás da porta, e antes que alguém pudesse reagir, o metal explodiu para fora, dobrado como papel.

No lado de fora, o carro freou bruscamente a poucos metros da barreira policial. O som dos freios cortou o ar como uma lâmina, e o cheiro de borracha queimada misturou-se ao odor metálico que o vento trazia da direção da fábrica! O ar ali parecia carregado, pesado, elétrico, como se a atmosfera tivesse alma.

O jovem, cabelos desalinhados, respiração acelerada, abriu a porta antes que o veículo parasse por completo, pisou no asfalto molhado, sentindo o frio subir pela sola dos tênis, e correu em direção à linha de isolamento. Luzes azuis e vermelhas piscavam nas fachadas dos prédios ao redor, refletindo em seus olhos. O som das hélices do helicóptero acima batia fundo em seu peito, cada batida lembrando-lhe o coração acelerado de alguém prestes a entrar em guerra. “ - Senhor! A área está interditada! ” Gritou um policial, segurando-o pelo braço.

O toque fez algo despertar dentro dele, por um instante, o mundo ficou mais lento, o som das vozes humanas se distorceu, ecoando distante, enquanto uma segunda presença emergia em sua mente, serena, profunda, com o timbre de um trovão contido. “ - Recuai se assim desejar, jovem. O que se ergue ali não pertence aos homens como sabes, mas ir ao encontre dele, é cruzar um limiar que separa o justo do condenado talvez...

Ele fechou os olhos, inspirou o ar úmido e sentiu o gosto da ferrugem e da fumaça, a voz o envolveu como vento quente em meio ao frio, imponente, mas compassiva, no entanto ele tinha suas próprias convicções. “ - Eu não posso recuar. ” Respondeu baixinho, os olhos ainda fechados. “ - Lá dentro ainda há vida, ainda há quem possa ser salvo. E é minha responsabilidade!

Não és um deus para julgar o destino de todos. A justiça que carregas não é o poder de salvar, mas o dever de agir quando possível. Recorda-te: toda a vida é importante, inclusive a tua, e a esperança é chama frágil, protege-a, não a destruas tentando alcançar o sol. Jamais te cobrarão o impossível, mas apenas o que te é plausível

Ele abriu os olhos, as pupilas cintilaram num tom dourado por um breve instante, imperceptível à maioria, mas suficiente para fazer o policial ao lado recuar, confuso. O vento soprou forte, levantando poeira e panfletos queimados, e do outro lado da rua, os vidros da fábrica tremularam, como se algo dentro dela respirasse com fúria. “ - Toda vida importa... ” Murmurou o jovem, mais para si do que para qualquer outro. “ - E se realmente essa missão me pertence, então que quem a colocou em minhas mãos me conceda coragem para não desistir, e sorte o bastante, para sobreviver e a completar.

O jovem ignorou a barreira policial, ignorando as vozes que gritavam atrás dele. Cada passo o levava mais longe do tumulto central, mas contornando o prédio, sempre mais perto da sensação de opressão! O calor que emanava da fábrica era como o de um forno espiritual, ardendo não só o corpo, mas a alma, o ar cheirava a enxofre e álcool, e um zumbido grave, quase inaudível, fazia os pelos de sua nuca se eriçarem, era o som da corrupção viva, o Velkur crescendo dentro de seu hospedeiro, alimentando-se do ódio, da perda e do desespero.

Próximo de um ponto de carga e descarga, muito reforçado e de acesso completamente bloqueado, ele parou, encostou a mão sobre o ferro retorcido e sentiu a vibração, o metal pulsava como se respirasse, quente demais para ser natural. Fechou os olhos e murmurou algo em voz baixa, numa língua que não pertencia à Terra, um sopro dourado escapou de seus lábios e se espalhou pelo ar, dissipando parte da fumaça negra que se acumulava ao redor do local.

- Então que tua coragem seja teu escudo, e tua determinação seja tua lâmina. ” A voz celestial ressoou uma última vez dentro dele, e então, a passagem obstruída rangeu e se abriu, como os portais que ele criara durante a queda, mas permitindo a passagem para dentro do local desta vez.

O jovem deu o primeiro passo para dentro, e o mundo pareceu mudar de cor. A luz da rua desapareceu atrás dele, engolida por uma penumbra viva, dentro da fábrica, o som era outro, distante, líquido, cheio de ecos, e entre eles, um rugido profundo o saudou, misto de raiva e prazer: “ - Ah sim… Eu já te esperava… Caminhante! ” O jovem ergueu o rosto, o brilho prata em seus olhos se acendeu por completo, cortando as sombras. “ - E eu vim pôr fim ao seu sofrimento.

O interior da fábrica parecia um templo profanado. As esteiras retorcidas, os tanques de aço abertos como feridas, o chão coberto de vidros e manchas escarlates, e, no centro do caos, o jovem, possuído. O corpo magro do rapaz se arqueava em espasmos, o rosto contorcido, e de sua boca vinha um som que não pertencia à garganta de um homem… Os olhos, vazios e pulsantes, eram como brasas, e a sombra que o envolvia se expandia, assumindo formas disformes, quase animalescas, quase humanas.

Mas a presença do jovem também impunha seu efeito, era um fato, quando ele adentrou, levemente o ar mudou, o calor do ambiente parecia recuar, como se a própria ruína respirasse temendo o que se aproximava. Os passos dele eram lentos, firmes, e o som das botas ecoava entre o gotejar de líquidos e o estalar de pequenos focos de fogo, a penumbra da fábrica reluzia levemente, refletindo em seus olhos prateados, olhos que não piscavam, olhos de um ser que via além do visível.

O possuído ergueu o rosto, um sorriso distorcido o cortou de orelha a orelha, e a voz que saiu dali era múltipla, uma cacofonia de gritos e sussurros fundidos. “ - Ah... então o cão do fogo veio buscar-me pessoalmente. Faz quanto tempo, desde que passaste a infectar o chão dos mortais com tua ladainha desconexa e sem sentido, a qual ninguém abraça?

O jovem manteve o silêncio, apenas o observava a criatura, o olhar prateado refletindo o brilho carmesim das chamas, ao passo que o Velkur, sentindo-se instigado, deu um passo à frente, o chão rangeu sob seu peso, e as sombras ao redor pareceram se dobrar para saudá-lo. “ - Tens olhos de fé... mas cheiro de dúvida. Diz-me, servo do fogo eterno... ainda crês que tua causa vale cada alma que consome?

Nesse instante, o mundo tremeu, o ar se tornou líquido, denso, o som das sirenes lá fora se distorceu como se viesse debaixo d’água. E então, do chão, das paredes, do teto, as chamas explodiram, elas não nasceram do fogo comum, mas de uma luz viva, dourada e prateada ao mesmo tempo, expandindo-se como asas abertas.

O Velkur rugiu, tentando conter o avanço das labaredas que o cercavam, o som era ensurdecedor, um trovão que se multiplicava em mil ecos, a estrutura tremeu, os policiais do lado de fora viram apenas o clarão iluminar a noite como um sol que nasceu no lugar errado… “ - Contato visual perdido! Repito, não temos mais visão do interior! ” Gritou alguém pelo rádio, o helicóptero girava sobre o teto da fábrica, agora coberto por labaredas que não queimavam o metal, mas o consumiam em luz, e então… Silêncio.

As chamas sumiram tão rápido quanto vieram, o portão principal, antes selado, cedeu com um estalo seco, a tropa de choque avançou, rompendo a entrada finalmente e o que encontraram fez o ar se prender no peito de todos: corpos carbonizados, marcas profundas de garras, poças de sangue espesso, e fuligem, mas nenhum sinal de pessoas vivas. Era como se tivessem evaporado no momento do clarão.

Um dos policiais, trêmulo, murmurou: “ - Meu Deus... o que aconteceu aqui dentro? ” O rádio chiou, nenhuma resposta, apenas o som distante das chamas morrendo.

Enquanto isso, em lugar distante e impossível de se conceber, uma caverna onde o fogo era a própria carne da terra, os dois seres reapareceram, o Velkur caindo de joelhos sobre a rocha incandescente, urrando enquanto a pele humana de seu hospedeiro se rasgava e revelava a verdadeira forma da criatura: asas negras corroídas, um corpo de sombras líquidas, e olhos vermelhos como lâminas.

Do outro lado, o jovem surgiu em meio a uma espiral de fogo dourado, o vento ao redor dele girando como uma tempestade contida, o rosto, antes humano, agora refletia algo além: uma vontade impossível, terrível e imponente. Seu olhar prateado ardeu, e ao redor dele, o chão rachou, as chamas subiram, contornando-o como um manto vivo.

O Velkur recuou, rosnando, o ódio vibrando no ar: “ - Aqui estás em meu domínio, andarilho... aqui, tua luz será devorada! ” O jovem deu um passo à frente, fitou o demônio em seus olhos, e sua voz ecoou clara e cortante, sem precisar gritar: “ - Aqui... toda escuridão conhecerá o limite de seu próprio medo.
O chão tremeu sob o peso da criatura, o ser chamado pelo jovem, de Velkur, agora livre da casca humana, revelava-se um ser grotesco, de corpo largo como um trono de carne, sustentado por pernas curtas, firmes e negras como ferro queimado. De seus ombros, braços longos e desiguais se projetavam, terminando em mãos com cinco garras recurvas, grossas e afiadas o bastante para cortar pedra.

A superfície de sua pele era viva, pulsava, respirava, exalava um fedor metálico que se misturava ao enxofre e ao calor das lavas próximas, os olhos, múltiplos e incandescentes, moviam-se sem ordem, cada um focado em uma direção diferente, como se enxergasse em planos distintos da realidade.

Já o jovem protagonista, imóvel, observava, seu corpo ainda humanoide, mas as chamas que o envolviam dançavam como véus conscientes, subindo e descendo em ondas lentas, reagindo à presença do inimigo. A caverna inteira parecia prender o ar, o som do magma fluindo soava como respiração de um gigante dormente.

O Velkur rosnou novamente, o som reverberou pelas paredes, grave e gutural, fazendo pequenas pedras se desprenderem do teto, e então, lançou-se para a frente. Um golpe, as garras atravessaram o ar, e foram detidas por uma parede de fogo translúcida, surgida a um palmo do peito do jovem de olhos prateados. O impacto produziu uma explosão de luz e um som como o estalar de mil espadas.

Outro golpe. Mais um. Cinco, dez investidas, todas repelidas pelo mesmo campo ígneo, cada vez mais intenso, até que o monstro recuou, ofegante, o vapor saindo de suas garras queimadas. O jovem sequer havia se movido.

O silêncio tomou a caverna, quebrado apenas pelo gotejar do magma e pela respiração pesada do demônio, então, era o rapaz quem dava novos passos à frente, e as chamas o seguiram, abrindo espaço ao redor de seus pés como se o fogo reconhecesse o próprio mestre.

Sua voz ecoou clara, imponente como uma sentença: “ - Dize por que escolheste este ressonante, Velkur! ” As chamas brilharam com o timbre de suas palavras, refletindo-se nas rochas, tingindo o rosto da criatura com luz dourada, o monstro hesitou, um segundo, talvez dois, e então falou, em uma voz que saiu espessa, gutural, mas ainda havia nela algo quase humano... um sarcasmo antigo.

- Por que, tu perguntas... ” O Velkur ergueu uma das garras, fitando o sangue que escorria e evaporava. “ - Ora… Eu amo a carnificina… E este corpo… ele ansiava por vingança. Eu apenas dei forma ao desejo que já queimava dentro dele. ” Deu um passo à frente, curvando-se levemente, os olhos vermelhos encarando a luz prateada do jovem, e o tom seguinte foi venenoso, provocador: “ - Vai condenar-me por ajudar um humano, caminhante? Ou admitirás que és tão cego quanto eles… que a dor deles só te importa quando serve à tua causa?

O silêncio caiu novamente, denso, incômodo, cheio de verdades distorcidas. O jovem não respondeu, não era necessário, apenas fechou os olhos, e quando os abriu outra vez, as pupilas desapareceram, substituídas por pura luz prateada. O ar vibrou, as chamas em volta começaram a se elevar, lentas e crescentes, como se o próprio inferno se manifestasse.

O Velkur urrava agora, um som bestial que sacudia as pedras ao redor, tomado por raiva pura, lançou-se em uma carga giratória, o corpo grotesco rodopiando como uma perfuratriz enfurecida, as cinco garras de cada mão traçaram arcos cortantes, cortando o espaço com assobios agudos. Nas profundezas daquele bramido, uma frase saiu, escancarada e cheia de ódio: “ - Morte a todo maldito Ekzyliön!

O impacto do ar quando a criatura avançou soou como um trovão. Poeira e pequenas fagulhas dançaram, e o cheiro de metal queimado encheu a caverna como prelúdio de desastre, cada passo do Velkur era um tambor de guerra que fazia as veias de lava borbulharem mais intensas, e então, do corpo do jovem envolto em chamas, tudo aconteceu como um destino anunciado. A face leonina de fogo, maior agora, mais feroz, feita de fúria e luz, ruge com um som que é ao mesmo tempo animal e divino. As labaredas ao redor do rapaz se comprimem, juntando-se como uma massa viva, e num clarão de prata e ouro, a forma flamejante se lança: um meteoro de fogo que rasga o ar subterrâneo.

A colisão é brutal. O Velkur recebe o impacto como se o mundo inteiro tivesse caído sobre ele, a explosão de calor e luz faz a rocha chiar, faíscas voam e uma onda de choque empurra tudo para trás. O grito que sai da criatura é um urro de pânico, não só dor física, mas a sensação de sua essência sendo consumida.

As chamas lambem, corroem e depois se transformam: a carne sombria do Velkur começa a desintegrar-se em fragmentos que queimam como sombra em brasa, partes do corpo do monstro se desfazem em cinza brilhante, estilhaços de matéria sombria que evaporam com um sibilo agudo, e o som que resta parece a de ossos de pedra se partindo e a de um lamento antigo que some no vento.

O impacto arremessa restos do Velkur metros para trás, eles quicam, rolam e se espatifam contra as rochas, espalhando uma chuva de fuligem e pequenos fragmentos incandescentes. A caverna inteira vibra com o eco da queda.

No meio desse rastro de destruição, um corpo humano recai ao chão, o jovem que havia servido de hospedeiro. Seu peito sobe e desce em respirações curtas, cheias de estilhaços de fogo que se apagam sobre sua pele. Ainda sem abrir os olhos, a boca costurada pela possessão murmura num fio de voz: “ - Eu… vou vingar meu irmão… ninguém vai me impedir de matar os malditos… eu tenho o direito… eu vou vingar… irmão… eu prometo… 

As palavras são um sopro vazio, um último resquício do ódio que fora usado contra ele. Então, como se alguém apagasse uma vela, os olhos do rapaz se fecham, o murmúrio acaba em silêncio.

As chamas que o envolveram começam a encolher. Primeiro recuam como se obedecessem a uma ordem, depois se dissipam em fitas tênues que se desfazem no ar, deixando um rastro de calor que logo esmorece. O brilho prateado que antes queimava nos olhos do jovem esmaece, e, num instante que pareceu não levar tempo algum, eles somem.

A caverna, que ainda chorava fumaça e fuligem, fica vazia onde antes houvera combate, apenas o cheiro acre de enxofre e metal queimado permanecia, pairando denso entre as rochas. O solo guarda marcas de garras, queimaduras que respiram calor e um silêncio pesado como uma promessa não cumprida.

Algumas batidas de coração após o clarão, distante e quase inaudível, o ar se rasga outra vez, não por violência, mas por deslocamento. No plano físico, quadras acima da fábrica, entre telhados, latas e bairros de concreto, o jovem e o corpo do possuído reaparecem, como se tivessem sido cuspidos de volta ao mundo. Caem com força no chão duro, rolando alguns metros até pararem, prosternados entre poeira, cascalho e estilhaços.

O rapaz permanece inerte por um momento, o corpo ainda quente, chagas finas brilhando como linhas de prata na pele, e quando finalmente abre os olhos, não há brilho de fúria, há confusão, vazio e uma sombra de memória que não chega a formar palavra.

Ao seu lado, o corpo do irmão, o que antes estivera possuído, jazia imóvel, mas vivo, respirando com dificuldade, como alguém trazido de volta de uma beira escura. A promessa de vingança que ecoara enquanto ele delirava parece, por ora, dissipada pela imensidão do que lhes sucedera.

Acima, no silêncio do céu cortado por sirenes que ainda uivavam lá embaixo, a cidade não sabia o que acontecera dentro da fábrica, para os que viriam a encontrar a cena, restariam perguntas: marcas de violência, fuligem, corpos, e um mistério que nenhum repórter saberia explicar.

Naquele instante, entre a dor e o silêncio, restava apenas uma certeza: a chama havia cumprido seu papel. Ela protegeu o que pôde, consumiu o mal e levou consigo o que julgou necessário, mas… Nada vem sem preço, e esse preço caberia a quem ainda carregava um nome, lembranças e culpa suficiente para sentir o peso do que foi salvo… e do que foi perdido. E isso se aplicava a ele, ao jovem possuído e a qualquer um envolvido com o vingativo adolescente!

O “andarilho” então não precisou de palavras, quando se posicionou junto ao corpo de Marcos, ainda fumegante e sujo de fuligem, estendeu a mão com cautela, o toque foi leve, tão leve quanto a ponta de uma pena contra a papiro em plena grafia, mesmo assim, foi tudo o que bastou.

Ao contato, o mundo privado do rapaz abriu-se como uma janela antiga varrida por ventos. Não era somente memória; eram imagens cruas, cheiros presos no peito e vozes emaranhadas numa única verdade: dor, abandono, promessa. O rapaz sentiu primeiro o gosto metálico do medo das memórias de Marcos, o mesmo sabor que tinha o ar dentro da fábrica, que se pegara nas costuras da alma do jovem. Sentiu o calor estranhamente seco das manhãs de trabalho, as mãos ásperas que o seguravam, o cheiro de óleo e de comida rala partilhada em mesas apertadas.

Viu a casa de infância, o sofá remendado, a foto dos pais na parede, sorrisos apagados pela falta de tempo e pela escassez. Viu o dia do acidente que os arrancara de si: o impacto, os vidros quebrando, vozes, a mão estendida da mãe antes do último suspiro, e viu o pequeno Marcos, apenas uma criança, sendo agarrado por Ricardo enquanto os minutos que pareciam horas transcorriam, uma cena que se repetia na lembrança do filho mais velho, como prova de quem, de fato, assumira o papel de pai.

Ricardo apareceu nas memórias com a nitidez de um farol. Mais velho, perto dos vinte e oito, braços fortes e voz grave, ele fora quem pegara Marcos no colo depois daquela noite, não por obrigação, mas por escolha. Ricardo não era um pai por sangue; era o irmão que se tornou pai, cuidando do menino com uma mistura de ternura e severidade. O cheiro de tabaco barato que às vezes marcava suas roupas ficara entrelaçado às memórias boas: o pão dividido, as broncas justas, as mãos que ensinavam a consertar uma bicicleta.

E então a ferida aberta se mostrou sem rodeios. Ricardo firmara coragem quando decidiu depor. Naquele dia, a jovem da fábrica fora ao encontro dele, pediu que testemunhasse o que vira: o dono da empresa assediando a funcionária. Ricardo, já cansado das injustiças, concordara, o depoimento não foi um ato de vingança, fora um ato de honestidade, uma tentativa de fazer aquilo que era certo. Mas a justiça tinha o preço que todos conheciam nas ruas: quem se expunha morria primeiro.

O jovem andarilho então sentiu o instante da emboscada com a mesma clareza com que sentira a mão de Marcos. Vídeo de monitoramento interrompido, rua esvaziada… Uma esquina, mãos que agarraram e calaram e esfaquearam até a morte. Ricardo caído numa viela, sangue quente na boca, o rosto retorcido pela surpresa, a cena foi curta, brutal, e marcou Marcos para sempre. O irmão que o criara deixou de respirar ali, e o menino, então já quase um homem, carregou a promessa que o transformou em ressonância.

A promessa era simples: vingar Ricardo. Não foi o Velkur quem plantou a ideia primeira, foi a dor e a lógica crua da rua, o demônio apenas ouviu aquele chamado e atendeu, como um predador que reconhece sangue no vento. Marcos tornara-se, pela intensidade do juramento, um ponto de ressonância perfeito, onde houvesse fúria assim, o Velkur vinha e ampliava, dava poder à mão trêmula que jurara ferro e fogo.

Ao encerrar o contato, o jovem rapaz sentiu o ácido da presença demoníaca corromper as bordas das lembranças, tornando-as mais ásperas, mais prontas a inflamar. Percebeu também que Marcos não fora completamente despido de humanidade: por baixo da raiva, havia o jovem que ainda chamava por Ricardo em sonhos, o filho órfão buscando um porto. A possessão era a consequência, mas não a raiz única.

O jovem então recuou um passo e, por um instante, uma sensação o parecia observar… O jovem respirava, ofegante, os olhos, turvos, não encontravam foco. Havia, no rosto de Marcos, traços de culpa, confusão e a tênue fagulha de uma vontade que não sabia se devia ser perdida ou curada.

O rapaz então pousou a palma da mão sobre o próprio peito, sentindo o pulso quente da chama interior. Ele compreendeu o preço: não bastara derrotar o Velkur naquela noite. Poderia livrar Marcos do hospedeiro e, naquela batalha, talvez o tivesse feito, mas o juramento de sangue, a dor primária, permanecia. Enquanto aquela nota vibrasse no peito do jovem Marcos, a ligação ao mundo espiritual seguiria exposta.

As palavras que escolheu então foram poucas e medidas, sussurros como a primeira brisa que toca um corpo em febre. “ - Não és só o que prometeste ser. Não deixes que a vingança te consuma.

Marcos mexeu os lábios, como tentando repetir algo que já não lembrava bem. O som foi uma raspagem: promessa, lembrança, esquecimento. O rapaz, órfão primeiro pelos pais e depois pelo irmão que fora pai para ele, carregaria agora a marca do que fora perdido e do que poderia atrair novas sombras.

O ar da manhã, agora quente e quase escaldante, se unia à fuligem e maresia, misturados num peso estranho que só o Rio de Janeiro de 2033 parecia ter. O jovem caminhava com pressa, respirando fundo, o corpo ainda vibrando do que acabara de acontecer, o moletom escuro, agora manchado de cinzas, lhe servia de manto e anonimato. Nos braços, o corpo desacordado de Marcos, leve como se a dor e a possessão, tivessem drenado toda a matéria que lhe restava - e quase o fizeram realmente.

A algumas quadras dali, o perímetro policial ainda reluzia em sirenes e vozes confusas, helicópteros haviam partido, e o chão tremia apenas com o som distante dos geradores, ele sabia que não deveria aparecer entre eles, nem agora, nem nunca, isso atrapalharia suas buscas e sua missão, mas jamais poderia deixar o jovem Marcos morrer por falta de socorro quadras acima, não depois de tudo o que vira dentro daquela mente ferida.

Ajustou novamente o capuz, cada passo era medido, a cabeça sempre baixa, desviando o rosto das câmeras quebradas ou das que ainda piscavam em vermelho… Ele não tinha força física avantajada, carregar um jovem desfalecido se fazia difícil para ele, então precisava contar com os obstáculos naturais entre uma rua e outra, para o cobrir como um velho aliado.

Meia quadra antes da ambulância, ele se ajoelhou, apoiando Marcos com cuidado sobre a calçada, o rapaz respirava, mas fraco, como quem ainda conversava em sonho com seus fantasmas e nenhum dos socorristas de ambulâncias haviam percebido os dois. O jovem olhou ao redor, havia um portão de ferro oxidado, pendendo do muro. Pegou uma pedra escondeu-se atrás do poste de energia elétrica, e arremessou com precisão, o impacto metálico ecoou pela rua, cortando o silêncio como um alarme involuntário.

De imediato, as vozes dos socorristas se ergueram: “ -  Ei, você ouviu isso? ” E logo uma resposta veio igualmente, “ - Lá, perto da esquina! ” Luzes começaram a se mover em direção ao som, ele deu um último olhar a Marcos e por um instante, a chama prateada em seus olhos brilhou sob o reflexo das sirenes, para logo em seguida se apagar novamente!

Virou-se e seguiu, buscando sumir entre becos e sombras, mas antes que pudesse cruzar a próxima esquina, um ruído sutil chamou sua atenção, o estalo seco de uma câmera disparando e o flash da fotografia atingindo em cheio sua visão estupefata com o susto! Instintivamente, ele ergueu o braço e tentou cobrir o rosto, o clarão refletindo nas poças do asfalto, quando ele observou de relance, já tentando sair de vista…

Apenas uns cinquenta metros à frente na mesma calçada, a jovem ruiva que havia estado no “The Harbor Coffee” logo mais cedo, ajustava a lente, sem perceber o que captara, fotografava o caos ao redor da antiga fábrica, registrando o que chamava de “Os rastros do inexplicável”.

Por um segundo, seu peito se contraiu, não pelo medo de ser visto, mas pelo pressentimento de algo que ele ainda não compreendia... Virou o rosto instintivamente, ocultando-se sob o capuz, e seguiu rápido pela rua lateral, sem olhar para trás. A moça ruiva não o percebera; estava focada na fábrica, no rastro de caos que horas antes ninguém ousaria explicar. Ela sequer imaginava que sua câmera havia capturado mais do que pretendia.

O vento carregou uma nova lufada de cheiro de fumaça e no meio da manhã ensolarada, restavam apenas o som distante das sirenes e o clique suave da câmera, gravando o instante em que destino e acaso decidiram se cruzar. O jovem caminhou sem direção, acelerando o passo, até avistar um ônibus qualquer abrindo as portas. Entrou, pagou a passagem sem erguer a cabeça, e deixou o destino decidir para onde ele deveria ser levado.

Minutos depois, ao ver uma praça aparentemente tranquila e com não muito fluxo, puxou a corda solicitando parada e desceu, o ar ali era mais leve, cheiro de grama molhada e maresia distante, o mundo apesar de tudo ainda tinha seus encantos. Os quiosques estavam abertos, cadeiras empilhadas e outras dispostas com mesas, o vento assobiando entre elas com a calma que seu peito já não lembrava.

Escolheu uma e sentou-se, respirou fundo, abriu o notebook, conectou o cabo improvisado da bateria e verificou as rotinas. As planilhas abriram perfeitas, as automações rodavam como se nada no universo tivesse mudado, mas algo nele havia mudado. E isso era impossível de ignorar.

Fechou o computador devagar e o apoiou sobre as pernas… Ali, sozinho naquele canto de praça, finalmente encarou a verdade que vinha evitando: Estava fazendo errado. Ele chegava sempre depois, após os gritos, após a dor, após a morte na maioria das vezes… Isso não era proteger, era apenas remediar as ruínas do que já não podia ser salvo.

Passou a mão pelo cabelo, bagunçando tudo em um gesto que misturava frustração e desorientação, como antecipar aquilo? Como encontrar um Velkur antes que eles se manifestassem, antes que alguém perdesse o controle, antes que outro Marcos fosse arrastado para o abismo? O maior problema é que ele não tinha referência alguma.

Nenhum livro, nenhuma memória, nenhum mestre, apenas um companheiro que falava em enigmas e uma missão que parecia maior do que sua própria vida e que ele sequer a havia recebido de forma correta, apenas, soube… " - Como vou descobrir algo assim... se nem sei o que procurar? " A pergunta ficou presa em sua garganta.

Foi então que uma lembrança irrompeu de forma brusca, como um estalo dentro da própria mente, um clarão branco, o flash, a sombra da rua, um vulto de cabelos ruivos, câmera em mãos. Ele fechou os olhos por um segundo, tentando reconstruir a imagem, ela veio em fragmentos: o rosto mal definido, a postura inclinada, o clique da câmera, a expressão concentrada. “ - Peraí… E aquela fotógrafa…? ” Ele franziu o cenho, a mente agora duvidosa e a pergunta que até então não tinha cogitado… “ - Onde foi que já vi ela mesmo?

Continua...

Galeria de Imagens

O novo visual do mapa-múndi, após a catástrofe nuclear de 2019:

O jovem anfitrião e protagonista da saga:

A moça "desastrada" que adentrou o café enquanto o jovem ali estava:

Marcos e seu irmão Ricardo, em foto antes da segunda tragédia:

A criatura que surgiu do corpo de Marcos:

A cena vista e enfrentada pelo Velkur, na caverna...


Tema de abertura Ekzyliön - Por IA feat Lanthys


Quando o céu gritar em chamas
E o mundo se partir em dois
Um passo
Um grito
O fim da paz
O que resta? Quem somos nós?

Nas sombras ele virá
Caminhando entre o nada e o amanhã

Ekzyliön
O peso que carrega
Ekzyliön
A chama que renega
No caos
Na dor
O destino a sangrar
Será luz ou sombra a ficar?

Cenário de cinzas no vento
Os sussurros do que já morreu
Um eco distante
Um juramento
De esperança que nunca cedeu

Das trevas ele surgirá
Com o destino na palma a decidir

Ekzyliön
O peso que carrega
Ekzyliön
A chama que renega
No caos
Na dor
O destino a sangrar
Será luz ou sombra a ficar?

Ekzyliön
O peso que carrega
Ekzyliön
A chama que renega
No caos
Na dor
O destino a sangrar
Será luz ou sombra a ficar?

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