Naquele momento único, tenso, de baixa capacidade de discernimento e de visão escurecendo, ela começa a lembrar-se de coisas que nunca havia parado para repensar ou reviver… Seu início, seus primórdios, suas primeiras etapas na vida… Era angustiante saber que ela podia ter feito aquilo antes, ter pensado antes, ter lembrado antes, mas infelizmente não aconteceu e agora… Era tarde demais para tentar corrigir… Rita nasceu em uma favela pobre do Rio de Janeiro! Desde muito cedo sua vida era trabalhar para ajudar os pais no sustento da casa, fosse nos semáforos, fosse ajudando na lida da casa… Seus pais sempre disseram à ela, sempre faça a coisa certa, mesmo que seja difícil e assim viverá em paz, não importa o problema que tenha para resolver!!
Dedicada e atenciosa aos ensinamentos dos pais, ela atingiu seus doze anos e começou a fazer serviços domésticos ao redor de onde moravam e assim, aumentou a renda da família sem precisar se voltar à situação à margem da lei que uma parte significativa dos mais pobres se voltavam… Agora, graças ao empenho de todos, eles tinham três refeições por dia para os quatro, seu pai, sua mãe, ela e seu irmão caçula… Na mente, sempre o conselho do pai quando se sentia fraquejar pelo cansaço e esforço:
“- Nunca deixe de fazer a coisa certa, mesmo que seja quase impossível! Lembre-se disso minha filha!”
O tempo passou, e embora todo seu esforço e fé em dias melhores, quando tinha seus quinze anos um terrível incêndio na favela levou a vida de seus pais e irmão e uma nuvem negra abateu-se sobre ela… Sem casa, sem parentes, as ofertas da rua e da vida começaram a rondar-lhe, mas ela lembrava de seu pai: “- Nunca deixe de fazer a coisa certa, mesmo que seja quase impossível! Lembre-se disso minha filha!” De posse disso, Rita negou-se a deixar a conduta que sempre teve de lado, ia honrar os pedidos de seu pai! Buscou trabalho, dormiu algumas vezes na rua, mas conseguiu encontrar ajuda e um novo emprego, ergueu-se novamente com seu esforço e retidão!
Rita nunca estudou mas era uma empregada doméstica dedicada e profissional no que fazia, havia atingido seus dezoito anos apesar das dificuldades e persistência e agora, sua vida havia mudado… Estava trabalhando no centro do Rio de Janeiro, a família dos Moraes era íntegra, empática e a havia recebido muito bem… A patroa, professora de universidade particular estava grávida de seu segundo filho e feliz com o aumentar da família; o patrão, empresário do ramo de comércio internacional, estava radiante com o futuro onde Rita cuidaria deles e de seus filhos… Ambos com estabilidade e vida confortável, Rita conquistou a confiança da família, os Moraes admiravam e apoiavam a conduta da funcionária, sempre em qualquer tarefa destinada a ela, guiada pelos ensinamentos do pai falecido: “- Nunca deixe de fazer a coisa certa, mesmo que seja quase impossível! Lembre-se disso minha filha!” A nova oportunidade rendeu-lhe bom salário, foi convidada a morar com eles e incentivada a estudar para aprender a ler e escrever com mais facilidade, dando novas oportunidades! Rita estava feliz e convencia-se que seu pai estava certo, fazer sempre a coisa certa!
Alguns meses depois, o patrão foi convidado a assumir uma das filiais nos Estados Unidos e a família iria mudar-se… Rita foi convidada a ir com eles, teria moradia, escola e salário, além de folgas adequadas para ter uma nova vida… Nada mais prendia a jovem aqui e assim, em poucas semanas ela abandonava o Brasil e assumia nova pátria, com grandes expectativas no futuro junto dos Moraes… Em sua mente ela agradecia, “- Obrigado pai, por sempre fazer a coisa certa como me ensinou, hoje eu vivo bem e em paz!”
A família Moraes e Rita chegam ao seu destino, se instalam na nova casa, foram muitas semanas até tudo ficar pronto e finalmente estavam perfeitamente estabelecidos… Rita havia conhecido a vizinhança, estava matriculada em educação para jovens e adultos, mas adaptava-se maravilhosamente bem na nova cidade, na nova vida, e o lema de seu pai sempre à guiá-la… “- Nunca deixe de fazer a coisa certa, mesmo que seja quase impossível! Lembre-se disso minha filha!”
Em torno de um mês depois, o casal Moraes pediu à Rita que cuidasse do bebê recém-nascido e de seu filho mais velho, agora com doze anos, enquanto eles saiam para comemorar a nova fase de suas vidas. Com toda a responsabilidade do mundo, depois de colocar as crianças para dormir, Rita desceu as escadas e foi para a sala principal assistir TV. Do nada o telefone tocou, ela temia não saber responder pois conhecia muito pouco do inglês, mas resolveu arriscar… Do outro lado, ao invés de alô, a voz chiada e assustadora diz, em português: “- Estou aqui em cima com as crianças. É melhor você vir aqui”.
Rita, descrente de algo assim ser real, ignora a ligação, achou que fosse um trote e seguiu assistindo a TV. O telefone toca novamente, entre gargalhadas, a mesma voz sinistra dizia: “- Estou aqui em cima com as crianças. É melhor você vir aqui”.
Dessa vez Rita preocupou-se com a possibilidade de alguém estar rondando ou observando a casa, e ligou para a polícia avisando sobre o trote. Eles pediram para ela tentar prolongar a conversa com a pessoa no telefone caso ela ligasse de novo para que eles pudessem rastrear a ligação. O telefone como esperado pela polícia e indesejado por Rita toca outra vez, e a mesma voz sinistra sentencia: “- Estou aqui em cima com as crianças. É melhor você vir aqui”.
Rita não consegue prolongar a ligação e decide desligar e ir ver as escadarias, porém, quando largou o telefone ao gancho, embora receosa ela atende e seu espanto foi gigante ao perceber que era a polícia avisando que o tempo ao telefone havia permitido rastrearem a ligação e com voz apavorada, a oficial diz: “- Saia da casa, o homem está na outra linha, em outro cômodo da casa!”.
Assustada, ela ponderou as palavras da policial, mas também ponderou as palavras de seu pai…
“- Nunca deixe de fazer a coisa certa, mesmo que seja quase impossível! Lembre-se disso minha filha!”
Ao ouvir passos pesados no corredor, Rita entende que a policial estava certa e que as crianças eram sua responsabilidade, subindo as mesmas determinada ao mesmo tempo que em pânico, torcendo para que nada tivesse acontecido com elas quando então, fora como se o tempo tivesse parado… Uma sensação estranha e incômoda percorreu suas costas e ela resolveu parar e olhar para o espelho do corredor... A cena foi aterradora e ela não conseguia acreditar estar vendo aquilo...
No espelho, era ela, a mesma roupa, o mesmo cabelo, a mesma idade, mas... Sua expressão era sádica, estava coberta de sangue com uma enorme faca na mão direita à torcer a cabeça enquanto gargalhava… Sua mente então atacada por aquela visão, é invadida por uma recordação, algo destruidor, algo avassalador, algo que ela deveria saber o tempo todo e por algum motivo não lembrava… Ela enxerga em sua mente, o fogo... Lembra de que ela se viu no espelho no mesmo dia, mas com fósforo em, uma mão e álcool na outra, e lembra também de sua mãe e seu irmão já desfalecidos com as pancadas que com o rolo de massa ela havia feito nos dois... Seu pai? Ela nunca conheceu seu pai… Ela nunca teve um pai, fora fruto de violência sexual que sua mãe havia sofrido… Então, com a visão confusa e sua mente mais ainda, ela se pergunta: “- Então... Quem sempre… Me falou… Aquilo?"
Sua versão do espelho então sorri sadicamente se aproximando dela, mesmo que ela não houvesse se movido no corredor e eis que um vulto sombrio e demoníaco surge como que com a mão ao ombro da cópia maldita, satirizando: “- Oi filha… Que bom que fez a coisa certa…”
Rita grita de forma estridente, sua mão se move sob ordens do peso da culpa e da desilusão de ter fraquejado... Sua mão se guia pela fúria de ter sido tão fraca e sucumbido de novo... Agora ela tinha se decidido, estava determinada, aquilo nunca mais iria acontecer... Então, a dor lancinante e fina em seu pescoço e logo o liquido quente escorria abundante pelo mesmo trazendo a esperada redenção que a jovem finalmente teve coragem de procurar… Ela tenta levar as mãos, mas percebe que sua visão escurece aos poucos enquanto seu corpo chegava ao chão… Somente ali, naquele momento, ela sentia o prazer de organizar os pensamentos e entender tudo que acontecera desde sempre e naqueles segundos finais, enquanto por algum motivo obscuro ela mantinha a consciência, o vulto negro e disforme surge de novo, diante dela mas agora no corredor, sorrindo maliciosamente... "- Bem vinda de volta... Filha... Eu senti saudades..."
Quando a polícia invadiu a casa, encontrou Rita com o corte fatal no pescoço, as crianças esquartejadas, e centenas de pegadas descalças impressas com sangue por toda a residência…
Quando a polícia invadiu a casa, encontrou Rita com o corte fatal no pescoço, as crianças esquartejadas, e centenas de pegadas descalças impressas com sangue por toda a residência…