terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Perturbador - Caso 07 - Culpado acima de tudo...


A escuridão daquele cemitério era intensa, mal se enxergava o chão onde precisava cavar... Estava passado já da meia-noite como nos bons contos de história de terror… Em princípio eu deveria ter medo, ficar assustado, com o vento que imitava vozes à me chamar, com as sombras que pareciam monstros à espreita, com os portões e placas que batiam e rangiam como se os demais mortos quisessem sair dos túmulos…

Eu estava cansado, sujo, minhas mãos sangravam um pouco devido ao esforço para cavar o buraco que fosse adequado para seu tamanho… O velho estranho me disse que se o buraco fosse do tamanho certo, iria funcionar, que era a grande dádiva de sei povo à operar... A chuva atrapalhava, deixava a terra encharcada, não tinha apenas a terra para ser mexida, a água anexada aumentava o peso e tornava tudo mais difícil…

Além do esforço para abrir o buraco ao chão, as lágrimas e o choro me tiravam as forças... As imagens, as cenas, os momentos que nos levaram ali, me corroíam a alma e me faziam soluçar e por vezes gritar, desperdiçando energia valiosa… A autoestrada deserta, a discussão, os gritos, a noite, a falta de atenção, a curva e a água na pista… Tudo que lembro após é dolorido demais para analisar e mesmo assim, mesmo com a dor insuportável, tudo aquilo me salta à mente à cada instante, me culpando novamente por tudo…

Termino o serviço, saio dali como posso, não estou com medo, não tenho medo do ambiente nem dos que ali vivem, sou Eduardo Ramirez e minha meta é muito maior que isso, pois não poderia ter sido desse jeito, não poderia ter sido assim, não com Bianca… Isso não podia ter acontecido, eu tinha que resolver aquilo de qualquer forma... Eu entro em meu carro... Não, em nosso carro e me afasto em direção à nossa casa, com pressa, com ansiedade, com emoção, com a sensação de que fiz o certo…

Os relâmpagos cortam o céu terrivelmente quando adentro pela porta da frente de nossa casa, vou andando até perto da janela onde ficávamos a olhar as estrelas sentando-me pesadamente ao chão, mas desta vez, contemplando as nuvens turbulentas e o estrondar dos raios violentos lá fora... Alguns segundos de sobriedade e então de novo, a mente me assalta e minha consciência me cobra…

O carro sai da pista em plena floresta, rodopiou algumas vezes, ela foi jogada para fora pois havia removido o cinto para se jogar do carro… O carro seguiu descendo e se arrebatando, mas era mais lento que ela que foi arremessada mais à frente de forma brutal e quando finalmente tudo parou, lá estava Bianca em pé, expressão indescritível e aterradora, prensada contra uma árvore pelo nosso carro enquanto eu ainda estava ao volante, preso pelo cinto... Sua região abdominal esmagada pelo choque e ela ainda podia me olhar e respirar de forma fraca, o suficiente pra entender o que aconteceu antes de perder os sentidos e desfalecer…

O socorro chegou, a polícia chegou, ela foi levada e eu não fui culpado por ninguém… Ela foi examinada, liberada, sepultada e eu ainda assim não fui acusado de nada… Mas eu estava no volante, eu discuti por besteira, eu a acusei de algo que não havia feito à ponto dela tentar se jogar do carro… Então veio a curva e tudo aconteceu e eu a perdi…

Finalmente todas aquelas lembranças e dores me traziam para a realidade de novo, onde via o sangue escorrendo de minhas mãos pelos ferimentos da pá, era o início do meu êxtase naquela noite e minha espera parecia ter chegado ao fim, eu seria finalmente penalizado por tudo que fiz…

O local era ideal, me prometeram que encontraria li o que buscava… Apostei tudo nisso, removi ela de seu sepulcro e a levei para onde era o indicado, finalmente agora eu estava feliz e completo, minha hora de finalmente sorrir havia chegado…

A porta principal da casa se abre com um rangido que não tinha quando entrei, parecendo demonstrar um peso sem igual a forçar-lhe a abertura… Não ouso me virar, finamente eu tenho medo, finalmente eu temo por mim… Ouço passos encharcados, passos lamacentos, algo que parecia trôpego e falho na caminhada… Quero correr mas não o faço, eu esperei por aquilo, eu ansiava por aquilo… Então, dedos frios envolvem meu pescoço e começam a apertar até que sinto o ar começar à faltar em meus pulmões e meu sangue ter o fluxo interrompido… Sorrio... Ela voltou para mim... Finalmente alguém irá me culpar e me punir pelo que fiz!

FIM

4 comentários:

  1. Grande Lanthys!

    A dor da culpa ....
    Sentimento visceral e corrosivo...

    Pior que uma gangrena...
    Mais nefasto que um câncer...

    As vezes ,é melhor morrer do que se tornar um morto vivo...

    Será mesmo?


    Valorizar quando perde...

    Outro ponto a ser ressaltado.


    É,Eduardo Ramírez ...
    Sinto pena de ti...

    Tu prefere a punição a ter que encarar a realidade...

    Mais uma vez o estado onírico é narrado com maestria.

    A visão do fantasma da mulher que ele não soube amar em vida lhe dá a ilusão de um alento...

    O alento da morte....


    Parabéns ,Lanthys !

    Arrebentou de novo !!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ah a consciência meu amigo... Ô juiz malvado, persistente e imortal... Eu sempre digo que quando tua moral se eleva, quando teu ser evolui, tua consciência se torna mais poderosa, mais completa e então, o que pra muitos não é nada, ou aos olhos dos outros não foi tua culpa, tu sabe, no teu íntimo, "se eu não tivesse feito tal coisa, isso não teria acontecido, eu tenho culpa..." E no caso dele, ainda teve a cena trágica da morte, o olhar da esposa antes de morrer, a discussão causou tudo e segundo ele, ainda era sem motivo, infundada... Eu sinceramente não queria estar na pele dele, não pelo final da história, mas pela culpa avassaladora que o fez preferir ser tragado pelo sobrenatural que conviver com a culpa... Obrigado pela leitura e apoio de sempre meu amigo, grande abraço!

      Excluir
  2. Uou! Uou!
    Cara, que história poderosa!
    Demonstrou com perfeição o que eu já ouvio ser chamado de sindrome do sobrevivente...
    Realmente a cabeça e a alma não funcionam direito em meio a uma situação como a descrita, levando alguém a atos impensáveis para receber o castigo que ele, talvez apenas ele, ache que mereça.
    E mostrando um excelente, crescente e constante amadurecimento como escritor, voc~e deixou o horror extremamente subentendido, sem apelar para um simples e, muitas vezes, costumeiro gore, deixando para o leitor preencher as lacunas.
    Meus parabéns! A cada novo texto você se supera.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Grande amigo Norb, mais uma vez obrigado pelas palavras e apoio... Pois é cara, esse trabalho foi algo bem humano digamos assim, em menor escala, nossa moral nos cobra quando fazemos algo errado e por mais que não nos apontem o dedo, quando estamos sozinhos, a gente sabe que errou e em casos extremos de trauma pela situação, a visão da esposa, o olhar dela antes de partir, tudo isso causou uma salada na mente dele que o fez partir para algo assim, em busca de ser "punido" por seu erro... Na visão dele, ele matou a esposa de forma cruel, e isso nunca ia o deixar descansar... Como disse ao Jirayrider, eu não queria estar na pele desse cara, não pelo "castigo" em si, mas pela dor que a culpa lancinante destruiu sua alma e capacidade de seguir vivendo... Obrigado pela leitura cara, grande abraço!

      Excluir

Grund-Tharg - Cap. 25: "- Aproximação pelo Monte Egophia!"

O dia amanhecia, como há muitos dias não acontecia, com o grupo despertando em camas, dentro de moradias, o cheiro de comida nova emanava pe...