quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Perturbador - Caso 06 - Amor a qualquer custo...


A chuva caía de forma intensa… Não era algo impossível de se suportar, mas ela molhava bastante, era fato… Não estava frio também, a temperatura deixava os pelo eriçados, mas ainda assim não incomodava… Na verdade, tudo aquilo que se podia sentir ali em nada se comparava a tudo que já havia sentido… Eu havia decidido, não queria sentir mais nada…

Ao nascer minha mãe morreu, meu pai me culpou enquanto viveu pela perda dela… Eu sentia que ele não me amava por conta disso… Aos oito anos foi a vez de meu pai partir e então fui para uma casa de acolhimento… Fome, frio, maus-tratos entre outras coisas que prefiro sequer mais lembrar causada pelos cuidadores da instituição, à destruírem o pouco de mim que ainda restava… Eu tinha quase uma década e ainda ninguém nunca tinha me amado de verdade…

Consegui sobreviver, cheguei à adolescência, a escola mesmo com os bullyings devido à minha massa corpórea fora do padrão, sempre me trouxe tristeza mas não era algo que chegava a incomodar, afinal, eu era obeso mesmo, iria contrariar como? Segui meus dias, acreditando que realmente eu era a pior pessoa do mundo, um ser humano que deu errado e que as pessoas preferiam estar longe… De novo a vida jogava na minha cara, eu não era amado por ninguém, e isso me corroía…

Aos meus vinte e um anos, por conta de minha aparência física em desacordo com os moldes da sociedade, nunca conheci festas, confraternizações, reuniões, nada disso chamava minha atenção inclusive, mesmo que eu algum dia tivesse sido convidado para alguma… Nunca fui aluno exemplar, nunca fui bom em nada e meu estado de espírito não me permitia lutar para melhorar ou considerar que eu tinha algo que deveria ser cultivado, a autoestima… Tudo que batia na minha mente e na minha alma o tempo todo, era… Eu nunca havia sido amado por ninguém…

Hoje estou aqui, aos trinta e seis anos… Nunca tive um relacionamento, nunca uma mulher se interessou por mim… Nunca um vizinho se preocupou se eu estava bem ou vivo… Nunca alguém proferiu a frase “- Você se sente bem?”... Eu não esperava um amor incrível, eu queria que apenas, como alguém que ama cães afaga seu cãozinho, uma única alma pelo menos, dissesse para mim um dia com sinceridade, “- Eu gosto de você…

Mais um dia na minha vida se encerrava, eu adentrava o kitnet que alugava desiludido… Fui demitido segundo o chefe, por corte de despesas… O aluguel estava vencido havia três meses, o senhorio já havia dito que iria me despejar… Acumulava dívidas no mercado, na farmácia, no hospital… Sim, hospital, onde fui tentar descobrir que dores estomacais eram aquelas e adivinhem? Recebi um resultado de acordo com minha vida, havia um câncer nascendo em mim, nos intestinos, inoperável… Minha estimativa eram cinco meses, ou menos… Olhei para os céus e pensei… Porque vir ao mundo sem nunca poder ser amado por alguém, qual foi meu crime afinal?

Saí do kitnet, apanhei o ônibus e andei por quase duas horas até chegar próximo da floresta… Dali ainda tinha pelo menos uma hora de caminhada até o local que todos usavam, pois para não incentivar meu ato, não existem transportes públicos até o local… Vencendo essa etapa e me perguntando a todo instante, porque nunca fui amado, percebi alguns carros estacionados e cobertos de vegetação… Sim, muitos vinham e deixavam seus carros ali e nunca mais voltavam, nem mesmo seus familiares ou amigos vinham procurar por eles… Parece que haviam mais pessoas que não eram amadas também…

Segui pela trilha por talvez uma hora e era triste o caminho… Alguns calçados… Barracas destruídas pelo tempo… Árvores retorcidas, marcas em cada uma delas talvez por alguém que temia se arrepender da decisão e retornar… Era praticamente uma “via crucis” cheia de dor e medos e, a cada momento que eu cogitava "- Não, essa não é a atitude correta...", em minha mente martelava de novo… Eu nunca fui amado por alguém então, porque insistir…

Escolhi uma árvore, coloquei a corda por sobre o galho e subindo em um tronco consegui deixá-lo alto o suficiente para executar meu plano e então, relembrando tudo que minha vida tinha sido, verifiquei se o nó que eu tinha estudado e treinado tanto estava perfeito… Coloquei o pescoço dentro do laço e preparei para me despedir quando então algo me chamou a atenção… Luzes… Como se uma casa existisse ali… E voz de crianças… Brincando, rindo, se divertindo… Eu estava decidido, mas, definitivamente aquilo era curioso, como alguém podia se divertir no meio de uma floresta escura como aquela?

Desci e fui em direção, a chuva caía e vi a cabana… Um senhor e uma senhora estavam sentado ao lado de um fogo de chão, enquanto as crianças em idades variadas corriam e riam felizes… Era uma família, todos pareciam se dar bem, se amar… Eu olhava pra eles e pensava, porque nunca ninguém me amou… Quando dou por mim, o senhor de dentro da casa gesticulava para mim, aos gritos:

“- Ei… Você… Vai se resfriar nessa chuva… Venha, entre, espere a chuva passar…Vamos!”

Fiquei sem entender, mas… Nunca ninguém me convidou para nada… Eu fui, meus olhos escorriam lágrimas, eu estava repleto de felicidade com aquele convite… Ao chegar, o velho homem me recebeu com abraços, a senhora me convidava a entrar, retiraram meu casaco e as crianças faziam festa ao meu redor… Sentamos rodeando a fogueira e a panela borbulhava com aromas deliciosos devido provavelmente aos temperos utilizados…

O senhor então sorridente, após ver que eu estava bem e já me secando da chuva me pergunta, o que eu estava a fazer naquele local isolado com aquele tempo horrível… Eu óbvio não quis falar a verdade, disse que havia me perdido… Ele sorridente me disse que ficasse tranquilo, que hoje eu ficaria com eles e tudo estava bem… Me contaram histórias, contaram piadas, perguntaram sobre mim e sobre o que eu pensava ou sentia… Em meio a tudo aquilo, comecei a chorar de emoção e então eles ficaram sérios a me observar… Sem poder mentir mais pra eles falei tudo que minha vida tinha sido e que eu tinha ido para tirar minha vida…

Entre prantos de alegria, esclareci que era a primeira vez que alguém me acolhia com tanto carinho e que mesmo que eu morresse hoje, estaria feliz… Foi então que eles ficaram com aspecto tenebroso, estáticos a me olhar… Estranhei mas não imaginei o que poderia ter sido, então seus sorrisos se abriram, dentes surgiram por suas bocas e antes de conseguir discernir o golpe de machado em minha cabeça que tirou minha vida, eu pude ouvir o mais velho dizer:

“- Felicidade deixa a carne macia senhor... Nós amamos refeição macia... Obrigado senhor…”

Antes de expirar meu último suspiro, antes de perder meus sentidos por completo, sentindo minhas forças se esvair rapidamente, consegui com um sorriso no rosto e uma lágrima no rosto, formular um último sentimento em minha mente quase desligada…

“- Pelo menos, em algum momento… De alguma forma… Eu fui amado…”

4 comentários:

  1. Cara !!!!

    Que conto foi esse!!!

    Tudo parecia levar para um ato de suicídio ,tamanha era a dor ,a solidão e o desespero de um personagem rejeitado pela vida !


    Eu já me senti assim,confesso !

    É duro !

    É triste !

    É enlouquecedor!

    Quando tudo parece se resolver , e ele encontra alguém que o acolha ,a morte surge de outra forma ,terrível por sinal.

    Uma machadada na cabeça !

    Entre o sorriso e a lágrima ele morre...

    Sinistro !

    Felicidade trás carne macia.

    Mais sinistro ainda !


    Parabéns ,meu amigo !


    Conduziste tudo muito bem!!!

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    1. Obrigado pela leitura e comentários meu amigo, esse conto foi algo bem intrínseco... Eu nunca me senti assim, mas, vejo muitas pessoas que apesar de não dizerem tudo como nosso personagem disse, ou de não se sentirem tão tristes quanto ele se sentia, eu vejo que muitas pessoas sofrem de alguma forma por falta de algum sentimento... E o que eu quis com esse conto principalmente é mostrar que, imaginem, se o cara ficou feliz em ser amado para ser devorado, como a vida dele poderia ter sido diferente se uma única pessoa tivesse mostrado nem que fosse, compaixão com ele? Para quantas pessoas será que ele em seus gestos e semblante pediu ajuda e o ignoraram? E se fosse na vida real, como se sentiriam as pessoas (caso tivessem alguma empatia) que por falta de uma simples palavra de apoio deixassem alguém chegar naquele estado? Eu me questiono isso todos os dias e penso, quantas pessoas podem estar ao meu lado agora, que posso ajudar a não chegar a nada disso, simplesmente por eu dar um pouco da minha atenção pra ele? Acho que a gente precisa pensar sobre isso muito, pois muitas pessoas chegam onde ele chegou, por omissão de quem está ao seu redor... Triste né meu amigo...

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  2. Caraca! Que baita construção de uma narrativa poderosa!
    Você criou um personagem tão palpável que logo nas primeiras linhas já foi estabelecido um laço com ele e confirme a história foi avançando a empatia com uma pessoa tão sofrida ficava dando aquela pontinha de esperança de que algo pode dar certo e evitar o fim para o qual você conduzia a trama, mesmo lembrando que, por ser um título do Perturbador, o fi al não seria feliz.
    E eis o plot twist!
    Você realmente deu um lampejo de esperança com as "pessoas" que o haviam acolhido e então... bum!
    Um final performances para um conto de terror.
    Ficou demais.
    Tô aqui aplaudindo de pé!
    Meus mais sinceros parabéns!

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    1. Norb meu amigo, muito obrigado pela leitura e incentivo de sempre... Como disse ao Jyraider, esse foi um conta escrito mais com o interesse de chamar a atenção do que dar um susto... As vezes um bom dia, um "como está hoje?" ou "esse trabalho ficou maravilhoso", tu muda o dia, e quem sabe a vida de uma pessoa... Lembro de um texto onde um cara cumprimentou um mendigo, já bem senil e este ficou a observá-lo estupefato... Ao querer entender o motivo, o mendigo disse: "- Nada, é que fazia tanto tempo que ninguém falava comigo que eu não sabia mais se eu estava vivo ou tinha virado fantasma..." Algumas pessoas encaram a solidão de boas, outros a preferem, mas tem pessoas que precisam do contato, do carinho, do apoio, do incentivo... Acho que estar sempre atento à alguém de quero fechada pode ser legal, a gente não vai transportar os problemas deles pra gente ou ainda tentar fazer por eles, isso tem de partir de cada um mas, o apoio, o incentivo, a palavra amiga... O amor fraterno e a consideração, evitariam que muitos como nosso personagem chegasse nesse ponto... Acho que tá na hora de nossa palavra chave se empatia e assim tentarmos evitar tantos acontecimentos tristes como esse... Valeu meu amigo, agradeço de monte pela leitura e comentário! \0/

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