quinta-feira, 3 de março de 2022

Perturbador - Caso 09 - Frases e verdades...


Era noite de quarta-feira, estávamos a assistir ao jogo de rúgbi pela liga mundial, parecia que seria uma noite tranquila, mas como bem diria Edward Murphy, "Se alguma coisa pode dar errado, dará" e eu iria comprovar isso no chamado de hoje!

Somos do 28º Batalhão Anti-Chamas da cidade de Fort Lauderdale e combater incêndios e salvar vidas é nossa principal missão ou motivo de vivermos! O alarme soou e parecia que nossos corpos reagiam como que em modo automático… Todos sabiam onde tudo estava, tudo havia sido treinado uma infinidade de vezes e em poucos minutos, completamente equipados e com adrenalina ao máximo, estávamos saindo do quartel general em direção à avenida 375, trajeto para a cidade vizinha!

O chamado da emergência avisava que um carro havia saído da pista, provavelmente devido à chuva forte daquela noite e que o carro que vinha logo atrás e avisou da emergência, não pode ficar no local pois estava trazendo uma mulher em vias de dar à luz, com extrema urgência para o centro médico! Isso queria dizer que, os demais que passassem sem ter visto o acidente, sequer saberiam que haviam pessoas que talvez precisassem de ajuda ali!

No entanto, embora a necessidade de velocidade, eu mantinha para mim o mantra de Leon Tolstói, “Os dois guerreiros mais poderosos são a paciência e o tempo!” Na nossa profissão, se não mantermos a sanidade e a serenidade, vidas são perdidas e isso não é admissível para qualquer soldado de resgate que se preze!

Bastaram minutos para chegarmos perto do indicado pelo veículo que informou o acidente, a chuva estava cada vez mais forte e seria difícil naquele breu todo, encontrarmos o local exato do ocorrido, poderíamos perder segundos vitais para salvar qualquer um deles e em um gesto de ansiedade talvez e da minha vontade de poder salvar aquelas pessoas, mentalizei a frase de Aristóteles “A esperança é o sonho do homem acordado!”

Eis que alguns metros à frente, como que em resposta à minha esperança manifestada, víamos alguém, em plena rodovia, acenando freneticamente os braços para chamar nossa atenção! A pessoa parecia estar bastante machucada, era uma mulher, aparentava seus trinta e cinco anos, cabelo loiro, blusa clara, calça jeans marinho… Havia sangue nela se percebia de longe, mas assim que ela sentiu que a seguiríamos, ela correu barranco abaixo acenando sempre, com certeza nos mostrando o caminho do acidente!

Socorristas, brigada de incêndio, equipamentos para cortar e remover ferragens, medicamentos, macas, tudo que fosse necessário para agirmos no local seguia conosco e de forma incrível, a mulher se mantinha sempre distante de nós por mais que corrêssemos… Enquanto a coitada seguia valente como nenhum de nós conseguiria ser, minha mente insistia em buscar frases e lembrei da célebre frase de Erich Remarque, “No desespero e no perigo, as pessoas aprendem a acreditar no milagre. De outra forma não sobreviveriam.” Aquilo era uma grande verdade e como esperado, seguimos firmes, bastaram alguns minutos para acharmos o veículo, capotado, gasolina vazando e de longe se ouvia o choro de um bebê, provavelmente preso às ferragens!

A mãe provavelmente era quem estava nos guiando, não conseguiu ajudar o bebê e foi à rodovia nos encontrar! Graças ao esforço dela, estávamos ali agora porém, diferente do que pensamos, o bebê não estava preso a nada, estava solto dentro do carro, de alguma forma ele foi jogado do assento e chorava muito devido ao susto provavelmente… Claro, era fato que sem o socorro ele morreria com a explosão que estava por acontecer, mas os ferimentos eram sem dúvida mínimos, o pequeno não corria mais riscos…

Removemos o bebê de meio dos ferros distorcidos o mais rápido que pudemos e então nos voltamos para o outro ocupante do carro, o motorista, que era o único ainda dentro do mesmo e se notava, pelo estado do corpo, estar sem vida já, infelizmente… No entanto, olhando com um pouco mais de atenção, o que chocou na verdade, não fora o estado do corpo ou mesmo a tristeza de perder uma vida, mas sim, os trajes e descrição daquela pessoa morta… Aparentava seus trinta e cinco anos, cabelo loiro, blusa clara e calça jeans marinho…

Olhamos todos uns para os outros e depois buscamos pela mulher que havia nos conduzido até ali e não mais a avistamos em lugar algum… Nenhum de nós era capaz de dizer qualquer coisa diante daquilo, daquela cena que tantos de nós já havíamos em algum momento ouvido relatar, a cena sobrenatural e porque não dizer fantástica, do fantasma determinado da mãe à buscar ajuda à seu filho prestes à morrer, mas era fato também que em sua grande maioria, ninguém acreditaria algo assim ser realmente verdade… No íntimo de meu ser, tentando resolver aquela sentença sem qualquer explicação, como sempre fiz em minha vida eu busquei uma frase famosa que me ajudasse a pelo menos acalmar meu coração diante daquilo e eis que a expressão proferida pelo inesquecível Shakespeare me veio à mente como um raio: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia…”

O carro começou a incendiar, todos tentaram correr e eu fui até a ribanceira para ver se havia mais alguém e então novamente o impossível me saltava aos olhos… Ao fundo do vale, perto da margem do rio, eu avisto novamente a mulher que nos guiou até ali… De pronto me ponho a questionar, como ela foi parar lá, como estava de braços abertos a nos chamar, como ela podia se manter de pé caindo por quase oito metros de altura… Então ouço meu colega gritar meu nome, viro-me para o veículo, a explosão acontece, eles são jogados para lá e eu ribanceira abaixo e assim, a visão que jamais conseguirei explicar…

A mulher, que havia nos trazido até ali, não era a mãe, não era um fantasma, era algo que eu não sabia definir, que explodiu em tentáculos e uma bocarra terrivelmente assustadora e repleta de dentes aterrorizantes… Sem ter onde me agarrar, como mudar minha queda, apenas caí direto em sua boca, senti seus dentes e meus ossos quebrando e meus órgãos sendo triturados… A explosão encobriu os sons, a chuva e o rio, diante da visão de meus colegas, deu destino a meus restos mortais… Meus últimos suspiros físicos foram dados dentro do estômago ácido do que quer que fosse aquela criatura e então, talvez por conta de tantas frases que já havia dito e da situação sem igual em que me encontrava, pela primeira vez eu não tinha uma frase para citar, e finalmente morri, consumido pelo ser…

Aí você se perguntaria, como estou contando essa história então? Venha comigo, se imagine dentro de uma jaula, com grades fortes e duas janelas para observar para fora… As janelas são os olhos de meu corpo, meus antigos olhos e a jaula é meu corpo agora possuído… A criatura ou seja lá o que for, ao consumir meu corpo se transformou em mim assim como antes de transformou na mãe do bebê e sabe-se lá quantos antes… Como o monstro não podia digerir minha alma, aqui estava eu, agarrado ao que me restou da materialidade, chorando dia e noite com o que ele é capaz de fazer, atacando e atraindo mais e mais pessoas para as encostas das rodovias, devorando tantas quanto pode, e o pior de tudo, sequer sei dizer porque não abandonou meu corpo assumindo a forma de suas novas vítimas…

Impotente, traumatizado, amarrado à meu corpo sem poder abandoná-lo, eu o vejo matar e matar sem parar, enganando homens, mulheres e crianças… Diante de tudo aquilo e do que seria minha eternidade, me restou buscar um último acalento, um último lampejo do que fui um dia, trazendo com toda força do meu ser ainda resistente, uma última expressão antes de deixar de existir pra sempre, sendo consumido por completo pela fúria insana daquele que agora era minha jaula e que nos tornou dois seres em um único corpo… Creio que a frase foi deveras adequada…

"Ou você morre como herói, ou vive o bastante para se tornar o vilão" - Harvey Dent

FIM

4 comentários:

  1. Uou! Gostei demais desse conto.
    O começo foi perfeito já fazendo com que me apegasse aos socorristas, principalmente a "moça das citações"
    Achei muito legal todo 9 clima que ia se desenhando como uma história de fantasma mas que, no momento correto se inverteu em um conto com uma pegada forte de Lovecraft, com um excelente "ponto final" , daqueles que fazem a gente pensar durante as possibilidades de continuação por um bom tempo.
    Parabéns cara!

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    1. Fala Norb, muito obrigado pela leitura e apoio de sempre! Pois é cara, a ideia inicial era somente o já conhecido conto do fantasma que pede ajuda e ele terminar com a frase do Shakespeare, mas ae me veio a ideia de, e se não fosse o fantasma da pessoa e sim outra coisa, mais perigosa, mais maldosa, e então complementei ele com essa possibilidade da criatura, que não se sabe ser um demônio ou algo desconhecido, que continua por aí consumindo seres humanos... Fico feliz que tenha curtido, muito obrigado pelo incentivo cara! \0/

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  2. Grande Lanthys!

    Frases feitas...

    Soluções fáceis para todo o tipo de situação...

    Todo o tipo de perguntas...

    Eficaz para determinado momento...

    Aquele retrato...

    Não para todos os momentos...

    Cada caso é um caso...

    Cada situação é uma situação. Por mais clichê que pareça.

    Mas, as pessoas querem o que é mais fácil...


    Quando tentamos dar esse tipo de respostas-padrões para tudo, caimos no risco de nos perdermos...

    Esse conto foi nessa direção.

    O final foi bem ruim para o nosso bombeiro.

    Muito bom!!

    Cada vez melhor!

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    1. Muito obrigado Jyraider, creio que um conto de susto (terror ainda tô longe) tem de alguma forma nos sacudir, nos fazer parar e pensar "cacete era isso então", e é o que tenho me esforçado pra tentar fazer! Tenho longo caminho pela frente ainda mas conte com minha determinação sempre!! Grande abraço e obrigado pela leitura e incentivo de sempre! \0/

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